Discurso Contra os Gregos - Sobre
a Obra
Por Roque Frangiotti
Os 42 capítulos que compõem esta
obra começam de maneira polêmica contra a cultura intelectual dos gregos (caps.
1-3). No cap. 4, Taciano expõe o conceito cristão de Deus. Trata, no cap. 5, da
relação de Deus com o Logos e da criação da matéria. A doutrina da ressurreição
e d o julgamento, no cap. 6. A alma
não é imortal por natureza. Ela é ressuscitada por Deus juntamente com o corpo. No cap. 7, Taciano descreve a criação dos anjos e dos homens. No cap. 8, a queda dos anjos e dos primeiros pais que acarretou a introdução da idolatria e da astrologia no mundo. Nos caps. 9-16, Taciano desenvolve a demonologia e os meios que o homem possui, na Igreja, para vencei os demônios, expulsar o pecado e atingir a imortalidade, Entre os caps. 17-28, expõe contínuos ataques contra as diversas opiniões dos gregos e se prolonga acusando a origem demoníaca de sua cultura, o uso dos remédios, a medicina, os espetáculos, o comportamento imoral dos pagãos e seus regimes políticos. Os caps. 29-30 formam um intermédio autobiográfico. Nos caps. 31-35, desenvolve o argumento da superioridade moral da "filosofia cristã" contra os abusos imorais dos gregos, demonstrando o baixo nível moral de seus homens mais famosos, de suas obras de arte, dos contos místicos que ensinam a imoralidade e corrompem os jovens. Nos caps. 36-41. Taciano desenvolve o segundo argumento, considerado o .argumento cronológico", provando que os bárbaros (os hebreus e, depois, os cristãos) porque se radicam em Moisés, são anteriores e, portanto, mais antigos que os sabias gregos. Moisés viveu muito antes de Homero, muito antes dos legisladores gregos e, inclusive antes que os sete sábios. 0 cap. 42 é uma conclusão: "Essas são as coisas, o gregos, que compus para vós, eu Taciano, que professo a filosofia bárbara, nascido em terra dos assírios, formado primeiramente em vossa cultura e depois nas doutrinas que agora anuncio como pregador. Já conhecendo quem é Deus e sua criação, apresento-me a vós disposto ao exame de meus ensinamentos, advertindo que jamais, renegarei minha conduta segundo Deus".
não é imortal por natureza. Ela é ressuscitada por Deus juntamente com o corpo. No cap. 7, Taciano descreve a criação dos anjos e dos homens. No cap. 8, a queda dos anjos e dos primeiros pais que acarretou a introdução da idolatria e da astrologia no mundo. Nos caps. 9-16, Taciano desenvolve a demonologia e os meios que o homem possui, na Igreja, para vencei os demônios, expulsar o pecado e atingir a imortalidade, Entre os caps. 17-28, expõe contínuos ataques contra as diversas opiniões dos gregos e se prolonga acusando a origem demoníaca de sua cultura, o uso dos remédios, a medicina, os espetáculos, o comportamento imoral dos pagãos e seus regimes políticos. Os caps. 29-30 formam um intermédio autobiográfico. Nos caps. 31-35, desenvolve o argumento da superioridade moral da "filosofia cristã" contra os abusos imorais dos gregos, demonstrando o baixo nível moral de seus homens mais famosos, de suas obras de arte, dos contos místicos que ensinam a imoralidade e corrompem os jovens. Nos caps. 36-41. Taciano desenvolve o segundo argumento, considerado o .argumento cronológico", provando que os bárbaros (os hebreus e, depois, os cristãos) porque se radicam em Moisés, são anteriores e, portanto, mais antigos que os sabias gregos. Moisés viveu muito antes de Homero, muito antes dos legisladores gregos e, inclusive antes que os sete sábios. 0 cap. 42 é uma conclusão: "Essas são as coisas, o gregos, que compus para vós, eu Taciano, que professo a filosofia bárbara, nascido em terra dos assírios, formado primeiramente em vossa cultura e depois nas doutrinas que agora anuncio como pregador. Já conhecendo quem é Deus e sua criação, apresento-me a vós disposto ao exame de meus ensinamentos, advertindo que jamais, renegarei minha conduta segundo Deus".
Discurso Contra os Gregos - Caps
I a XII
Por Taciano, o Sírio
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides
M. Balancin
Fonte: Padres Apostólicos, Volume
I, Coleção Patrística. Ed. Paulus
Exórdio
Gregos, não vos mostreis tão
inimigos dos bárbaros, nem julgueis desfavoravelmente as suas doutrinas. Com
efeito, qual das vossas instituições não teve origem entre os bárbaros? Os mais
famosos entre os telmísios inventaram a adivinhação pelos sonhos; os cários, a
previsão pelos astros; e os vôos dos pássaros foram observados primeiro pelos
frígios e os mais antigos dos isáurios; os cipriotas encontraram a arte de
sacrificar; os babilônios, a astronomia; os persas, a magia; os egípcios, a
geometria; os fenícios, o conhecimento das letras. Cessai, portanto, de chamar
invenções o que são puras imitações. De fato, Orfeu vos ensinou a poesia e o
canto, e também a iniciação nos mistérios; os etruscos, a plástica; os
egípcios, com suas tábuas dos tempos, a compor histórias. De Mársias e Olimpo
tomastes a arte da flauta e, apesar de ambos serem frígios, com toda a sua
rudeza, conseguiram extrair harmonia do bambu. Os tirrenos vos ensinaram a
trombeta; os ciclopes, a lavrar metais; e uma mulher que, como disse Helânico,
imperou outrora sobre os persas, vos ensinou a compor cartas. Seu nome era
Atosa. Portanto, deixai de lado esse vosso orgulho e não frente a elegância de
vossas palavras, vós que, ao elogiar-vos a vós mesmos, tendes para vos aplaudir
os de vossa própria casa. O homem que possui inteligência deve esperar o
testemunho dos outros e concordar com eles quando fala. Acontece, porém, que
só a vós sucede que não coincidis nem em vossa maneira de falar.
Com efeito, os dórios não falam
como os atenienses, nem os eólios pronunciam como os jônios. Havendo, pois, tão
grande discussão entre vós onde não deveria existir, eu me acho em dúvida sobre
a quem deveria dar o nome de grego. O mais estranho de tudo é que favorecestes
expressões não castiças e, abusando de palavras bárbaras, transformastes a
vossa fala numa verdadeira algaravia. Por isso renunciamos à vossa sabedoria,
por mais que algum de nós tenha sido extremamente ilustre nela. De fato,
segundo o cômico, tudo isso não passa de "galhos secos, palavrório
afetado, escolas de andorinhas, corruptores da arte", e os que se deixam
dominar por isso sabem apenas roncar e emitir grasnados de corvos. A retórica
que compusestes para a injustiça e a calúnia, vendendo a peso de ouro a liberdade
de vossos discursos, e muitas vezes o que de imediato vos parece justo, logo o
apresentais como coisa não boa; a poesia, porém, vos serve para cantar as
lutas, os amores dos deuses, e a corrupção da alma.
Zombaria contra os filósofos
Com a vossa filosofia, o que
produzistes que mereça respeito? Quem, dos que passam pelos mais notáveis ficou
isento de arrogância? Diógenes, com a bravata do seu barril, ostentava a sua
independência; depois comeu um polvo cru e, atacado por cólicas, morreu de
intemperança; Arístipo, passeando com o seu manto de púrpura, entregava-se à
dissolução mantendo a aparência de gravidade; Platão, com toda a sua filosofia,
foi vendido por Dioniso por causa de sua glutonaria. Aristóteles, que
nesciamente estabeleceu limites para a providência e definiu a felicidade pelas
coisas de que ele gostava,. agradava muito depressa o rapaz louco Alexandre
que, por certo muito aristotelicamente, colocou numa jaula um amigo seu porque
este não quis adorá-lo, e o levava em todo lugar como um urso ou um leopardo.
Ao menos obedecia fielmente aos preceitos do seu mestre, mostrando o seu valor
e a sua virtude nos banquetes, e atravessando com a sua lança o mais íntimo e
querido de seus amigos, depois chorando e negando-se a comer para fingir tristeza,
a fim de não atrair o ódio dos seus.
Também poderia rir-me dos que até
agora seguem as doutrinas de Aristóteles que, afirmando que as coisas aquém da
lua carecem de providência, apesar de estarem mais perto da terra do que a lua
e mais baixo do que o curso desta, elas provêm o que a providência não alcança;
os que não têm beleza, nem riqueza, nem força corporal ou nobreza de origem,
segundo Aristóteles também não possuem felicidade. Que estes continuem
filosofando.
Não posso aprovar Heráclito,
quando diz:"Eu ensinava a mim mesmo", por ser autodidata e também
soberbo. Nem o louvaria por ter escondido o seu poema no templo de Ártemis,
para que depois a sua edição ficasse envolta em mistério. Os que se interessam
por essas questões dizem que o poeta trágico Eurípedes foi lá, leu o livro e
propagou de memória e com todo empenho as trevas de Heráclito. Mas o que pôs em
evidência a sua ignorância foi o modo como morreu: atacado de hidropisia, e
tratando a medicina como a filosofia, envolveu-se com estrume de boi e, quando
este endureceu, produziu convulsões em todo 0 seu corpo e ele morreu de
espasmo. Também se deve rejeitar Zenão, quando ele afirma que por meio da
conflagração universal os mesmos homens ressuscitarão para as mesmas ações:
Amito e Meleto para acusar Sócrates; Busíris para matar seus hóspedes e
Herácles para repetir seus trabalhos. Na hipótese da conflagração, Zenão admite
mais maus do que bons, pois houve apenas um Sócrates e um Herácles e outros do
mesmo tipo, que sempre foram poucos e não muitos. Segundo ele, sempre haverá
mais maus do que bons, e o próprio Deus aparecerá como autor do mal ao ter que
morar em cloacas, entre vermes e malfeitores.
Quanto à charlatanice de
Empédocles, as erupções da Sicília demonstraram que, não sendo deus, ele mentia
dizendo que o era. Também me rio dos contos de velha de Ferecides e de
Pitágoras, que herda a sua doutrina, e de como Platão, embora alguns não o
queiram, imita um e outro. De fato, quem aprovaria o casamento de cão de um
Crates e não, de preferência, rejeitando a grande charlatanice de seus
seguidores, voltará a procurar o que é verdadeiramente bom? Não vos deixeis,
portanto, arrastar por esses bandos de pessoas que gostam mais do barulho do
que do saber e que dogmatizam coisas contraditórias, cada um dizendo o que lhe
vem à boca. São muitos os choques que acontecem entre eles, pois um odeia o
outro, criando doutrinas opostas por pura fanfarronice, desejando postos
eminentes. Seria melhor que, não se antecipando à realeza, não adulassem os que
mandam, mas esperasse que os grandes se aproximassem deles.
Contra o culto imperial e a
idolatria
Gregos, por que vos empenhais,
como em uma luta de pugilato, para que as leis do Estado se choquem contra nós?
Se eu não quero submeter-me a certos costumes, por que tenho que ser odiado
como ser mais abominável? O imperador manda que lhe paguem tributos, e eu estou
disposto a pagá-los; meu amo me ordena que lhe obedeça e o sirva, e eu
reconheço a minha servidão. De fato, ao homem se deve honrar humanamente;
temer, porém, só se deve temer a Deus, que não é visível por olhos humanos, nem
compreensível por qualquer arte. Não estou disposto a obedecer, somente se me
mandam negar a Deus;
prefiro morrer, para não ser
condenado como embusteiro e ingrato.
Nosso Deus não tem princípio no
tempo, pois só ele é sem princípio e, ao mesmo tempo, princípio de todo 0
universo. Deus é espírito, mas não aquele que penetra a matéria, e sim o
criador dos espíritos materiais e das formas da própria matéria; sendo
invisível e intangível, ele é o pai das coisas sensíveis e visíveis.
Conhecemo-lo através da criação e compreendemos o invisível do seu poder
através de suas criaturas. Não quero adorar a obra que, por amor a mim, foi
feita por ele. Como declararei deuses a madeira e as pedras? Porque o próprio
espírito que penetra a matéria, sendo como é inferior ao espírito divino e
assimilado como está à matéria, não deve ser honrado do mesmo modo que o Deus
perfeito. Também não devemos pretender ganhar com presentes o Deus que não tem
nome, pois aquele que de nada necessita, não deve ser rebaixado por nós à
condição de um necessitado. Quero expor com mais clareza a nossa doutrina.
A geração do Verbo por
participação
Deus existia no princípio, mas
nós recebemos da tradição que o Princípio é a potência do Verbo. Com efeito, o
Senhor do universo, que é por si mesmo o sustentáculo de tudo, enquanto a
criação não tinha ainda sido feita, estava só. Mas enquanto estava com ele toda
a potência do visível e invisível ele próprio sustentou tudo consigo mesmo, por
meio da potência do Verbo. Por vontade de sua simplicidade sai o Verbo e o
Verbo, que não cai no vazio, gera a obra primogênita do Pai.
Sabemos que ele é o princípio do
mundo, mas produziu-se não por divisão, e sim por participação. De fato, o que
se divide, fica separado do primeiro, mas o que se faz por participação,
tomando caráter de uma dispensação, não deixa em falta aquilo de onde se toma.
Da mesma forma que de uma só tocha se acendem muitos fogos, mas o fato de
acender muitas tochas não diminui a luz da primeira, assim também o Verbo,
procedendo da potência do Pai, não deixou sem razão aquele que o havia gerado.
E assim que eu mesmo estou falando e vós me escutais e certamente não porque a
minha palavra passe a vós eu fico vazio de palavras ao conversar convosco. Ao
emitir a minha voz, eu me proponho ordenar a matéria que está desordenada em
vós. Da mesma forma que o Verbo, gerado no princípio, depois de fabricar a
matéria, gerou por sua vez ele próprio para si mesmo a nossa criação, também
eu, regenerado à imitação do Verbo e compreendido que tenho a verdade, trato de
organizar a confusão da matéria cuja origem participo. Com efeito, a matéria
não é sem princípio como Deus, nem por ser princípio é igual a Deus em poder,
mas foi criada e não foi criada por outro, e sim por aquele que é criador de
todas as coisas.
Cremos na ressurreição e no
julgamento
Por isso, também cremos que
acontecerá a ressurreição dos corpos depois da consumação do universo, não como
dogmatizam os estóicos, segundo os quais as mesmas coisas nascem e perecem
depois de determinados períodos cíclicos, sem utilidade nenhuma, mas de uma só
vez. Totalmente acabados os tempos que vivemos, dar-seá a reintegração de
todos os homens por razão do julgamento. Então seremos julgados não por Minos
ou Radamante, antes de cuja morte, como dizem os mitos, nenhuma alma era
julgada, mas o juiz é o próprio Deus que nos criou. Por mais que nos
considereis charlatães e palhaços, nada disso nos importa, depois que cremos nesta
doutrina. Com efeito, do mesmo modo como, não existindo antes de nascer, eu
ignorava quem eu era e só subsistia na substância da matéria carnal-mas uma vez
nascido, eu, que antes não existia, acreditei em meu ser pelo nascimento-assim
também eu, que existi e que pela morte deixarei de ser e outra vez
desaparecerei da vista de todos, novamente voltarei a ser como não tendo antes
existido e portanto nasci. Mesmo que o fogo destrúa a minha carne, o universo
recebe a matéria evaporada; se me consumo nos rios ou no mar, ou sou
despedaçado pelas feras, permaneço depositado nos tesouros de um senhor rico. O
pobre ateu desconhece esses depósitos, mas Deus, que é rei, quando quiser,
restabelecerá em seu ser primei ro a minha substância, que é visível apenas
para ele.
A obra do Verbo: criação dos
homens e dos anjos
O Verbo celeste, espírito que
vem do Espírito e Verbo da potência racional, à imitação do Pai que o gerou,
fez o homem imagem da imortalidade, a fim de que, como em Deus existe a
incorruptibilidade, assim o homem, participando da porção de Deus, possua o ser
imortal. Entretanto, o Verbo, antes de criar os homens, foi artífice dos anjos,
e algumas criaturas foram feitas livres, sem ter em si a natureza do bem (que
não existe senão em Deus), mas que se realiza através dos homens, graças à
liberdade de escolha. Desse modo, o mau é castigado justamente, pois se tornou
mau por sua própria culpa; o justo é merecidamente louvado por suas obras, pois
não transgrediu a vontade de Deus, embora por seu livre-arbítrio pudesse fazer
isso. Essa é a nossa doutrina sobre os anjos e os homens.
Todavia, como a virtude do Verbo
tem em si a presciência do futuro, não por fatalidade do destino, mas por livre
determinação dos que escolhem, predisse os acontecimentos futuros, freou a
maldade por suas proibições e louvou os que perseveram no bem. Aconteceu,
porém, que os homens e os anjos seguiram e proclamaram Deus àquele que, por ser
criatura primogênita, superava os demais em inteligência, justamente ele que se
havia revelado contra a lei de Deus. Então a virtude do Verbo negou a sua
convivência não só ao que se tornara cabeça desse louco orgulho, mas também a
quantos o haviam seguido. E o homem, que tinha sido criado à imagem de Deus,
apartando-se dele o espírito mais poderoso, tornou-se mortal e aquele que fora
primogênito, por sua transgressão e insensatez, foi declarado demônio, e os que
imitaram suas fantasias se transformaram no exército dos demônios que, por
razão de seu livre-arbítrio, foram entregues à própria perversidade.
Contra o destino e os deuses
O objeto da perversão deles
são os homens, pois, mostrando-lhes, como os jogadores de dados, uma tábua com
a descrição da posição dos astros, introduziram o destino, "império"
extremamente injusto, porque foram produzidos conforme o destino tanto o que
julga como aquele que é julgado; os que assassinam e os que são assassinados,
os ricos e os pobres, todos são gerados pelo próprio destino; e todo
nascimento, como no teatro, provoca prazer para aqueles entre os quais, como
diz Homero: "Gargalhada inextinguível se levantou entre os deuses
afortunados".
Os que estão contemplando a luta
corpo a corpo, quando um favorece a outro, e aquele que se casa e corrompe os
jovens, adultera e ri, irrita-se, foge e é ferido, de que modo não será
considerado mortal? Com efeito, pelas mesmas ações com as quais os deuses
mostraram aos homens de que natureza eram, incitaram aqueles que as ouviram a
praticar coisas semelhantes. Não é assim que os próprios demônios, com seu
capitão Zeus à frente, caíram também sob o destino, ao serem dominados pelas
mesmas paixões que os homens? Por outro lado, como honrar aqueles entre os
quais existe tal contrariedade de pareceres? De fato, Rea, a quem os habitantes
das montanhas da Frígia chamam Cibele, por causa de seu querido Átis, erigiu em
lei a mutilação dos órgãos viris; Afrodite, em troca, se compraz nos braços do
matrimônio; Ártemis entrega-se à magia; Apolo, à medicina. Depois de cortada a
cabeça de Gorgo, a querida de Posêidon, da qual brotou o cavalo Pégaso e
Crisador, Atena e Asclépio repartiram as gotas de sangue; com elas, Asclépio
curava e Atena, com as mesmas gotas, transformou-se em assassina de homens.
Creio que os atenienses, não a querendo desonrar, atribuem o fruto de sua união
com Hefesto à terra, para que não se pense que, como aconteceu com Atalanta e
Meleagro, também Atena tenha sido privada de sua
honradez, por Hefesto. Com
efeito, é natural que o coxo de ambos os pés, que fabrica broches e braceletes
flexíveis, seduzira com esses adornos femininos a menina sem pai e órfã
Posêidon é navegante; Ares se compraz nas guerras; Apolo tange a cítara;
Dioniso é tirano dos tebanos; Crono é tiranicida; Zeus se une com sua própria
filha e esta concebe de seu pai. Agora me dará testemunho Elêusis, a serpente
mística e Orfeu, que grita: "Fechai as portas aos profanos".
Aidoneo rapta Coré e seus feitos
se transformaram em mistérios. "Deméter chora sua filha", e muitos se
deixam enganar pelos atenienses. No sagrado recinto do filho de Leto há um
ponto que se chama o Umbigo e o Umbigo é a sepultura de Dioniso. Agora, louvo a
ti, Dáfne, que depois de vencer a intemperança de Apolo, confundiste a sua arte
divinatória, pois não sabendo de antemão o que seria de ti, de nada lhe serviu
a sua arte. Diga-me agora o Flecheiro certeiro como Zéfiro matou Jacinto.
Zéfiro o venceu. Apesar de o trágico dizer: "A aura é o carro mais
glorioso dos deuses", vencido por uma leve aura, perdeu o seu querido.
Somos superiores ao destino
Tais são os demônios que definiram
ou fixaram o destino numa tábua, e seu primeiro elemento foi a descrição dos
animais. Com efeito, aqueles que se arrastam pela terra, os que nadam nas águas
e os que andam de quatro pelos montes, com os quais eles passaram a vida ao
serem expulsos da vida do céu; a todos esses consideraram dignos da honra
celeste, em parte para fazer crer que eles ainda vivem no céu, e em parte para
justificar como racional, através de sua colocação nas estrelas, a conduta
irracional que tinham sobre a terra. Dessa forma, o colérico e o sofrido, o
temperante e o intemperante, o pobre e o rico dependem dos demônios que
estabeleceram a lei do seu horóscopo. Com efeito, a configuração do círculo do
Zodíaco é obra de seus deuses e a luz de um deles, quando predomina, triunfa
sobre todos os outros, embora aquele que agora foi derrotado costume, mais
adiante, vencer. Mas os que se divertem com eles são os sete planetas, como
aqueles que jogam os dados. Nós, porém, somos superiores ao destino e, ao invés
de demônios errantes, reconhecemos um só Senhor inerrante, e aqueles de nós que
são conduzidos pelo destino, rejeitaram aqueles que estabeleceram suas leis.
Por Deus, dizeme: "Triptólemo semeou o trigo e depois de seu luto Deméter
se transforma em benfeitora dos atenienses? Então, por que, antes de perder a
sua filha, ela não foi benfeitora dos homens? No céu se mostra o cão de
Erígona, o escorpião que ajudou Ártemis, a metade da nave Argos, o centauro
Quíron, e o urso de Calisto. Então, como é que o céu estava sem ornamento antes
que todos esses ocupassem seus postos? A quem não parecerá ridículo que a letra
delta se tenha colocado entre os astros, segundo alguns por causa da forma da
Sicília e, segundo outros, por ser o primeiro elemento do nome de Zeus? Então,
por que Sardenha e Chipre não são honradas no céu? Porque não se colocaram
também entre os astros os monogramas dos irmãos de Zeus, que com ele repartiram
os reinos? Por fim, de que modo Cronos, que foi acorrentado e expulso do seu
reino, foi constituído administrador do destino? Como pode dar reinos aquele
que já não é rei? Deixai, pois, tanta ignorância e não cometais uma
iniqüidade, odiando-nos injustamente.
As metamorfoses dos deuses
Atribuem-se aos homens
transformações fabulosas, mas entre vós até os deuses se transformam. Rea se
transforma em árvore e, por causa de Persífone, Zeus se transforma em serpente;
as irmãs de Faetonte em choupos, e Leto num animal vil, codorniz, pela qual a
atual Delos se chama Ortígia. Por tua vida, dize-me: Deus se transforma em
cisne, toma a forma de águia e, para ter Ganimedes como copeiro, se orgulha de
sua pederastia? Como posso cultuar deuses que se deixam subornar pelos
presentes e que se irritam quando não os recebem? Que eles se acertem com o
destino, porque eu não estou disposto a adorar os planetas. Que significam
essas madeixas de Berenice? Onde estavam as estrelas de sua constelação antes
de ela morrer? De modo que Antínoo, um belo rapaz, foi colocado na lua depois
de morto? Quem o levou até lá? Certamente também a este, como aos imperadores,
alguém que se ria dos deuses disse, com perjúrio pago, que o havia visto subir
ao céu, e foi acreditado e, por ter feito Deus semelhante a si mesmo, foi tido
como merecedor de honra e prêmio. Com que direito despojastes o meu Deus? Por
que desonrais a sua criação? Matas uma ovelha e depois a adoras. O touro está
no céu e degolas a sua imagem. O Ingenículo procura exterminar um animal nocivo
e, em troca, tributa honra à águia, que devora Prometeu, plasmador do homem. O
cisne é formoso por ter sido adúltero, formosos também são os Dióscuros,
raptores das filhas de Leucipo, que alternam um em cada dia da vida. Melhor é
Helena, que abandonou Menelau, de cabelos loiros, e seguiu Páris, rico em ouro
e mitrado; justo e discreto, foi ele que transportou essa prostituta para os
Campos Elísios, Porém não, tampouco a filha de Tindaro foi tornado imortal, com
razão Eurípedes encenou a morte de tal mulher, levada a cabo por Orestes.
Intransigente afirmação de
independência
Portanto, como vou reconhecer
o horóscopo do nascimento, quando vejo tais administradores do destino? Sou eu
que não quero ser rei; sou eu que não busco a riqueza, recuso o comando
militar, odeio a fornicação, não me dedico à navegação levado por cobiça
insaciável, não sou atleta para ser coroado, fujo da vanglória, desprezo a
morte, coloco-me acima de qualquer doença, não deixo que a tristeza consuma a
minha alma; sou eu que, sendo escravo, suporto a escravidão ou, sendo livre,
não me orgulho de minha nobreza. Vejo que apenas um é sol para todos e que
também existe uma só morte, ora através do prazer, ora através da indigência. O
rico semeia e o pobre participa da mesma colheita; os ricos morrem e os
mendigos têm o mesmo fim da vida. Os ricos e os que, por sua aparente glória,
conseguem as honras necessitam de muitas coisas; mas o pobre e modesto, que não
deseja mais do que está a seu alcance, consegue isso com mais facilidade. Para
que passar a noite em vigília, cumprindo teu destino através da avareza? Para
que, para cumprir teu destino, mil vezes preso de teus instintos, mil vezes
morrer? Morre para o mundo renunciando à tua loucura. Vive para Deus,
recusando, através do teu conhecimento, teu velho horóscopo. Nós não fomos
criados para a morte, mas morremos por nossa própria culpa. A liberdade nos
deixou; nós que éramos livres, nos tornamos escravos; fomos vendidos pelo
pecado. Deus não fez nada mau; fomos nós que produzimos a maldade; nós que a
produzimos, porém somos também capazes de recusá-la.
Duas espécies de espíritos
Conhecemos duas espécies de
espíritos: um, que se chama alma, e outro que é superior à alma, por ser imagem
e semelhança de Deus. Um e outro existiam nos primeiros homens, para que, de um
lado, fossem materiais e de outro, superiores à matéria. A coisa se explica
assim: é fácil de constatar que toda a construção do mundo e a criação inteira
éfeita de matéria e que a própria matéria foi produzida por Deus. Deve-se
pensar que, antes que os elementos dela fossem separados, a matéria era
indefinida e informe, mas ficou ordenada e bela depois da divisão. Portanto, o
céu é de matéria e também suas estrelas; a terra e todo vivente que é produzido
sobre ela têm a mesma constituição, de modo que o nascimento de todos é comum.
Embora isso seja assim, há certas diferenças nas coisas materiais, de maneira
que algumas são particularmente belas; embora também sejam belas, são
inferiores a belezas superiores. O corpo é de constituição única e a causa de
sua existência é a mesma, e mesmo sendo assim, existem nele diferenças de
glória. De fato, um é o olho, outra a orelha, outro 0 ornamento dos cabelos, a
disposição das entranhas, a junção das medulas, os ossos e os nervos. Contudo,
mesmo uma parte sendo diferente da outra, existe harmonia entre elas por causa
da dispensação de concórdia. De maneira semelhante, também o mundo, segundo o
poder de quem o fez, tem alguns elementos mais esplêndidos e outros menos e,
por vontade de seu Criador, recebeu parte do espírito material. Isso será
possível ser entendido em pormenores a quem, de maneira vã, não despreze os
diviníssimos ensinamentos que, conforme os tempos, foram postos por escrito e
que tornaram absolutamente gratos a Deus os que lhes deram atenção.
Igualmente, também os que vós
mesmos chamais de demônios, por terem a constituição da matéria e possuírem
espírito que dela procede, converteram-se em luxuriosos e gulosos. De fato, só
alguns deles se dirigiram para o mais puro, enquanto outros escolheram o
inferior da matéria e tiveram conduta conforme a ela. Gregos, estes são aqueles
que vós adorais, apesar de terem sido feitos de matéria e se encontrarem muito
distantes de qualquer disciplina. Com efeito, os supracitados, entregues à
vanglória pela sua estupidez, soltas todas as rédeas, decidiram ser salteadores
da divindade. Mas o Senhor do universo os deixa entregues à própria soberba até
que o mundo, chegado a seu termo, se dissolva e venha o juiz, e todos os homens
que, após a rebelião dos demônios, aspiraram ao conhecimento do Deus perfeito
recebam no dia do julgamento o mais perfeito testemunho, por causa de seus
próprios combates.
Portanto, existe espírito nas
estrelas, espírito no anjos, espírito nas palavras, espírito nos homens,
espírito nos animais; no entanto, sendo um e o mesmo, contém em si diferenças.
E nós dizemos isso não só com a língua, nem por meras razões verossímeis, nem
por especulações e confusão sofista, mas valendo-nos de discursos de grande
expressão divina. Vós que desejais aprender, apressai em aproximar-vos. E vós
que não desdenhais nem mesmo cita Anarcasis, não desdenheis também em ser
instruídos por aqueles que professam uma religião bárbara. Fazei de nossa
doutrina pelo menos o uso que fazeis da mântica babilônia; escutai-nos pelo
menos como escutais o carvalho fatídico, embora tudo isso seja invenção de
demônios extraviados. Contudo, as doutrinas de nossa ciência estão além da
compreensão mundana.
Discurso Contra os Gregos - Caps
XIII a XXIV
Por Taciano, o Sírio
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides
M. Balancin
Fonte: Padres Apostólicos, Volume
I, Coleção Patrística. Ed. Paulus
Por si, a alma não é imortal
Gregos, a nossa alma não é
imortal por si mesma, mas mortal; ela, porém, é também capaz de não morrer. Com
efeito, ela morre e se dissolve com o corpo se não conhece a verdade; ressuscita,
porém, novamente com o corpo na consumação do tempo, para receber, como
castigo, a morte na imortalidade. Por outro lado, não morre, por mais que se
dissolva com o corpo, se adquiriu conhecimento de Deus. Porque, de si, a alma é
treva e nada de luminoso há nela, e é isso o que sem dúvida significam as
palavras: "As trevas não apreenderam a luz". Não é a alma que salva o
espírito, mas é salva por ele, e a luz apreendeu as trevas, no sentido que o
Verbo é a luz de Deus e a alma ignorante é treva. Por isso, quando vive só,
inclina-se para a matéria, morrendo juntamente com a carne, mas formando
parelha com o espírito de Deus, já não carece de ajuda e se ergue às regiões
onde o Espírito a guia. De fato, a morada do Espírito está no alto, mas a
origem da alma é embaixo. Originariamente, o espírito habitava junto com a
alma, mas, não querendo segui-lo, o espírito a abandonou e ela, que conservava
como que um resplendor de seu poder, mas pela separação já não era capaz de
contemplar o perfeito, na sua busca de Deus, representou para si, por extravio,
uma multidão de deuses, seguindo aos demônios enganadores. O espírito de Deus,
porém, não está em todos os homens, mas somente desce para alguns que vivem
justamente e, estreitamente abraçado à alma, anuncia, por meio de predições, o
escondido para as demais almas. E aquelas que obedecem à sabedoria, atraem para
si mesmas o espírito que lhes é congênito. Todavia, as que não obedecem, mas
recusam aquele que é mensageiro do Deus que sofreu, mostram-se almas que fazem guerra
a Deus, e não são religiosas.
O castigo eterno dos demônios
Também vós sois assim,
gregos, elegantes no falar mas loucos no pensar, pois chegastes a preferir a
soberania de muitos deuses em vez da monarquia de um só Deus, como se
acreditásseis estar seguindo demônios poderosos. Com efeito, assim como os
salteadores, por sua desumanidade, costumam audaciosamente dominar os seus
semelhantes, também os demônios, depois de fazer as vossas almas abandonadas se
desviarem no lodaçal da maldade, as enganaram por meio de ignorâncias e
fantasias. É fato que eles não morrem facilmente, pois não têm carne; mas,
vivendo, praticam ações de morte, e também eles morrem tantas vezes quantas
ensinam a pecar aqueles que os seguem. Portanto, a vantagem que agora têm sobre
os homens, isto é, não morrer de modo semelhante a eles, esse mesmo fato lhes
será mais amargo quando chegar a hora do castigo, pois não terão parte na vida
eterna participando dela, em lugar da morte na imortalidade. E como nós, para
quem morrer é agora um acidente tão fácil, receberemos depois a imortalidade
junto com o gozo, ou a pena junto com a imortalidade, também os demônios que
abusam da vida presente para pecar a todo momento, e que durante a vida estão
morrendo, terão depois a mesma imortalidade que os homens que deliberadamente
realizaram tudo o que eles lhes impuseram como lei durante o tempo em que
viveram. Não digamos nada sobre o fato de que, entre os homens que os seguem,
aconteceu menos espécies de pecados por não viverem longo tempo, enquanto nos
citados demônios o pecado se prolonga muito mais, em razão do tempo indefinido
da sua vida.
O que é o homem propriamente
E preciso, portanto, que
daqui para a frente busquemos novamente aquilo que já tivemos e perdemos: unir
a nossa alma com o espírito santo e cuidarmos para que ele forme uma parceria
com Deus. Entretanto, a alma dos homens compõe-se de muitas partes, e não de
uma só; ela é composta, de modo que se manifesta por meio do corpo. Com efeito,
nem a alma poderia por si mesma jamais se manifestar sem o corpo, e nem a carne
ressuscita sem a alma. O homem não é, como dogmatizam os que têm voz de
gralhas, animal racional, capaz de inteligência e ciência, pois, segundo eles,
pode-se demonstrar que também os irracionais são capazes de inteligência e
ciência. Contudo, só o homem é imagem e semelhança de Deus, e chamo homem não
ao que realiza ações semelhantes aos animais, mas àquele que, indo além da
humanidade, chega até o próprio Deus. Esse ponto já foi mais tratado mais em
pormenores por nós em nosso Sobre os animais. O que agora nos interessa dizer é
que natureza é a imagem e semelhança de Deus. 0 incomparável não é outra coisa
que o ser em si mesmo, e o que se compara também não é outra coisa que o ser
parecido. O Deus perfeito está isento de carne; o homem, porém, é carne; o
vínculo da carne é a alma e o que a alma retém é a carne. E se tal espécie de
constituição funciona como templo, Deus quer nele habitar por meio do Espírito,
que é o seu legado; mas se não étal santuário, o homem não se avantaja aos
animais a não ser por sua voz articulada; no restante, não sendo imagem de
Deus, a sua vida não se diferencia da deles. Os demônios, porém, não têm carne,
mas possuem estrutura espiritual, como a do fogo ou do ar. E por isso que os
corpos dos demônios são visíveis apenas para aqueles que são dotados do
espírito de Deus; para os outros, isto é, para os psíquicos, de modo nenhum,
pois o inferior não tem força para compreender o superior. Esta é, portanto, a
razão pela qual, a essência dos demônios não admite lugar para a penitência,
pois são reflexos da matéria e da maldade, e a matéria quis dominar a alma; e,
conforme o seu livrearbítrio, os demônios deram aos homens leis de morte; mas
os homens, depois de perderem a imortalidade, com sua morte pela fé, venceram a
morte e, por meio da penitência, foi-lhes outorgado o dom de uma nova vocação,
conforme a palavra que diz: "Pois por um pouco de tempo foram tornados
inferiores aos anjos". De fato, é possível para todo aquele que foi vencido
vencer por sua vez, contanto que rejeite a constituição da morte, e qual seja
esta é fácil de ver para aqueles que desejam a imortalidade.
A possessão não vem das almas
Os demônios que dominam os
homens não são as almas dos mortos. Com efeito, como podem ser capazes de agir
depois de mortos? A não ser que creiamos que, enquanto vive, um homem é
ignorante e impotente e, depois que morre, recebe daí para a frente um poder
mais eficaz. Isso, porém, não é assim, como já demonstramos em outro lugar, nem
é fácil compreender como a alma imortal, impedida pelos membros do corpo, se
torne mais inteligente quando se separa dele. Não. São os demônios aqueles que,
por sua maldade, se enfurecem contra os homens e, com variadas e enganosas
representações, desviam os pensamentos dos homens, já por si inclinados para
baixo, a fim de torná-los incapazes de empreender a sua marcha de ascensão para
os céus. Mas nem a nós ficam ocultas as coisas do mundo nem a vós será difícil
compreender as divinas, contanto que chegue até vós a potência do Verbo que
imortaliza a alma.
Mas os demônios também são vistos
pelos psíquicos, quando eles se mostram a si mesmos para os homens, seja para
serem considerados, seja para lhes causar algum dano como a inimigos - pois são
amigos de muito más intenções -,seja, finalmente, a fim de procurar pretexto
para o seu culto aos que lhes são semelhantes. Se estivesse em seu poder, eles,
sem dúvida, poriam o céu abaixo junto com toda a criação; se agora não fazem
isso é porque não podem; mas com a matéria inferior fazem guerra à matéria que
é semelhante a eles. Quem, portanto, quiser vencê-los, rejeite a matéria, pois,
armado com a couraça do espírito celeste, será capaz de salvar tudo o que por
ela foi recoberto.
Existem também doenças e rebeliões
em nossa própria matéria, e os demônios, quando nos sobrevém a dor, atribuem a
si mesmos as causas delas. Há também vezes em que eles próprios, por causa da
tempestade da sua própria maldade, agitam o estado do nosso corpo, mas, feridos
pela palavra do poder de Deus, saem temerosos, e o doente fica curado.
As doenças vêm dos demônios
O que vamos dizer das
simpatias e antipatias de Demócrito, a não ser que, conforme o dito popular,
esse homem de Abdera fala abderiticamente? E como aquele que deu nome à cidade
que, segundo dizem, era amigo de Herácles, foi devorado pelos cavalos de
Diomedes; de modo semelhante, aquele que se gloria do sábio Ostanes, no dia da
consumação será entregue como pasto do fogo eterno. E vós também, se não
puserdes fim ao vosso riso, sofrereis os mesmos castigos que os feiticeiros.
Por isso, ó gregos, escutai-me! Eu vos grito como que do céu, e não queirais
com vossas zombarias voltar à vossa falta de razão contra o arauto da verdade.
Não há doença que possa ser expulsa por meio da antipatia, nem louco que se
cure amarrando-se com tiras de couro. São ataques dos demônios, e aquele que
está doente, aquele que diz estar enamorado, aquele que odeia, aquele que quer
se vingar, são tomados como auxiliares. A maneira do seu artifício é a
seguinte. Os caracteres das letras e das linhas por elas formadas não podem por
si mesmas expressar o sentido da frase, mas são sinais que os homens inventaram
para expressar seus pensamentos; é preciso conservar a ordem das letras,
conhecendo por sua posição o sentido que lhes foi determinado. Do mesmo modo,
nas variedades de raízes, nem as receitas de nervos e ossos têm alguma eficácia
por si mesmas, mas são símbolos da maldade dos demônios, os quais determinaram
que tenha força cada uma dessas coisas. Vendo que os homens aceitam o serviço
que tais meios lhes proporcionam, atribuindo-o a si mesmos, fazem dos homens
seus escravos. Mas como pode ser bom colocar-se a serviço de adultérios? Como
pode ser honroso que alguns corram em auxílio daqueles que odeiam? Como pode
ser moral atribuir a cura dos loucos à matéria e não a Deus? Toda a sua astúcia
se orienta para apartar os homens da religião, fazendo-os crer em ervas e
raízes. E o próprio Deus, se tivesse ordenado essas coisas, para fazer o que os
homens desejam, seria autor de ações más; todavia, como ele é autor de tudo o
que de qualquer forma é bom, e a intemperança dos demônios abusa das coisas do
mundo para fazer mal, também a eles deve ser atribuída essa espécie de maldade,
e não ao Deus perfeito. De fato, como é possível que, não tendo eu sido
absolutamente mau enquanto vivi, os meus restos, depois de morto, sem eu fazer
nada, os meus restos, que já não se movem nem sentem, realizem alguma coisa
sensível? Como aquele que morreu com a mais desastrosa morte poderá ajudar
alguém a se vingar? Com efeito, se fosse capaz, muito melhor vingaria a si
mesmo contra o seu próprio inimigo, pois aquele que pode ajudar a outros, com
muita maior razão poderá fazer justiça a si mesmo.
A cura vem de Deus
A arte dos medicamentos, em
todas as suas espécies, tem a mesma artimanha. Com efeito, se alguém se cura
por meio da matéria, crendo nela, curar-se-á muito melhor dirigindo-se ao poder
de Deus, pois da mesma forma que os venenos são composições materiais, da mesma
natureza são também os medicamentos curativos. Contudo, até quando rejeitamos a
matéria claramente má, não faltarão muitas vezes pessoas que se dediquem a
curar, misturando algo mau com o que é bom e, definitivamente, até para fins
bons, valem-se de meios maus. Assim como aquele que se assenta para comer com
um ladrão, ainda que não o seja, todavia, pelo fato de participar de sua mesa,
participa também de seu castigo, da mesma forma, aquele que sem ser mau se
mistura com o mau e o emprega para um suposto bem, será castigado por essa
comunicação pelo mesmo Deus que julga o mau. E por que razão aquele que crê na
dispensação da matéria não quer acreditar em Deus? Por que não recorres ao
Senhor mais poderoso e te curas a ti mesmo, como o cão com as ervas, o cervo
pela víbora, o porco por meio dos caranguejos dos rios e o leão pelos macacos?
Por que divinizas os elementos do mundo? Por que, ao curar o teu próximo, és
chamado de seu benfeitor? Segue a potência do Verbo. Os demônios não curam, mas
com seus artifícios procuram escravizar os homens e, com razão, o admirável
Justino disse que se assemelhavam aos bandidos. Com efeito, assim como estes
têm por costume colher vivos alguns e depois os devolvem aos seus a preço de
ouro, também esses supostos deuses visitam os membros de alguns e depois, em
vista de sua própria glorificação, por meio de sonhos, mandam que os enfermos
se apresentem publicamente diante de todo mundo e, depois de ter recebido os
louvores, saem voando dos enfermos e, pondo fim à doença que eles mesmos
causaram, restituem os homens ao seu primeiro estado.
Desprezo hipócrita pela morte
Vós, porém, que não tendes
conhecimento dessas coisas, aprendei-as de nós, que as conhecemos, e terminai
agora de apregoar que desprezais a morte e praticais a frugalidade. O fato é
que vossos filósofos estão tão distantes de semelhante ascese, que alguns
recebem anualmente do imperador romano seiscentas moedas de ouro, as quais não
têm outra finalidade útil, nem mesmo para cortar gratuitamente a longa barba. Ao
menos Crescente, que colocou o seu ninho na grande cidade, sobrepujava a todos
em pederastia e não tinha outro objetivo além do dinheiro; ele que aconselhava
a desprezar a morte, de tal maneira a temia, que maquinou dá-Ia a Justino e
também a mim, como se fosse um mal, porque, pregando a verdade, ele
desmascarava os filósofos como glutões e embusteiros. E quem tinha a obrigação
de perseguir o filósofo, senão exatamente vós? Se dizeis, coincidindo com
nossas doutrinas, que não se deve temer a morte, não morrais por vanglória
humana, como Anaxarco, mas tornai-vos desprezadores da morte, por causa do
conhecimento de Deus. De fato, a feitura do mundo é boa, mas a conduta que nele
se leva é má, e é fácil ver como em mercado público aplaudis teatralmente aos que
não conhecem a Deus. Com efeito, o que é a mântica? Como te deixas extraviar
por ela? Ela é para ti ministra das cobiças que imperam no mundo. Queres fazer
guerras, e tomas Apolo como conselheiro de tuas matanças. Queres raptar uma
donzela, e te propões que a divindade venha em tua ajuda. Estás enfermo por tua
culpa e, como Agamenon pedia dez conselheiros, assim queres que outros tantos
deuses estejam a teu lado. Uma mulher que bebe água enlouquece, e com os
perfumes de incenso sai de si mesma, e tu dizes que ela adivinha. Apolo foi
profeta e mestre de adivinhos e, no entanto, Dafne o enganou. Por tua vida,
dize-me: Como é que um carvalho adivinha, pássaros predizem o futuro, e tu és
inferior às plantas e pássaros? Portanto, seria bom que te convertesses em
árvore fatídica e tomasses as asas dos habitantes do ar. Aquele que te torna
avaro é o mesmo que te Vaticana como enriquecer-te; aquele que provoca sedições
e batalhas, esse mesmo te profetiza a vitória na guerra. Se te tornasses
superiores às tuas paixões, desprezarias tudo o que existe no mundo.
Nós somos assim, e não deveis
odiar-nos; ao contrário, rejeitando os demônios, seguir somente aquele que é
Deus. Tudo foi por ele, e nada foi feito sem ele; se no mundo criado existe
algo nocivo, isso sobreveio por causa dos nossos pecados. Posso mostrar-vos
toda a economia disso. Escutai-me, e aquele que crer o compreenderá.
As asas da alma
Mesmo que te cures por
medicamento (concedo-te isso apenas por cortesia), deves também dar testemunho
a Deus. De fato, o mundo ainda nos arrasta para baixo, e por causa da minha
fraqueza busco a matéria. As asas da alma são o espírito perfeito, e quando o
pecado tirou-lhe o espírito, a alma ficou pairando como um pássaro implume,
veio arrastar-se por terra e, por ter saído da convivência celeste, desejou a
convivência das coisas inferiores. Com efeito, os demônios foram arrancados de
sua morada, e nossos primeiros pais foram desterrados: aqueles foram expulsos
do céu; estes da terra, mas não de uma terra como esta, e sim de uma outra de
melhor constituição. E dever nosso, suspirando antecipadamente pelo primitivo,
rejeitar tudo o que é impedimento para recuperá-lo. De fato, ó homem, o céu não
é ilimitado, mas finito e limitado. Todavia, o que está além dele são éons ou tempos
melhores, que não sofrem a variedade de estações, através das quais é produzida
toda espécie de enfermidades. Aí se experimenta toda boa temperatura, dia que
não tem fim e luz inacessível aos homens aqui debaixo. Aqueles que compuseram
geografias ou descrições da terra nos deram a descrição dos diversos lugares,
segundo a possibilidade do homem. Contudo, como não eram capazes de explicar os
lugares além do céu, porque não são passíveis de observação, deliraram com
fluxos e refluxos. Uns disseram que os mares eram cheios de algas, outros,
cheios de barro; disseram que alguns lugares eram abrasados pelo calor, outros,
gelados pelo frio. Nós, porém, aprendemos dos profetas o que ignorávamos;
estes, persuadidos de que o espírito celeste, vestidura de nossa imortalidade,
juntamente com a alma, um dia possuirá a imortalidade, predisseram o que as
outras almas não sabiam. Entretanto, é possível a todo aquele que se despoja de
si mesmo, possuir esse superenfeite do espírito e voltar ao primitivo
parentesco com ele.
Não é loucura afirmar a
encarnação
O gregos, nós não estamos
loucos, nem pregamos idiotices, quando anunciamos que Deus apareceu em forma
humana. Vós, que nos insultais, comparai os vossos mitos com as nossas
narrativas. Deífobo, como se conta, era a própria Atena, para enganar Heitor;
através de Adureto, Apoio, o de vasta cabeleira, dedicou-se a apascentar bois
de andar torto e, em forma de uma velha, apresentou-se a Semeie, a mulher de
Zeus. Como é que vós, entretendo-vos com tais cantos, podeis zombar de nós? O
vosso deus Asclépio morreu, e aquele que numa só noite violou cinqüenta
donzelas em Tépias, morreu entregando-se como pasto das chamas. Prometeu,
cravado no Cáucaso, sofre o castigo pelo benefício prestado aos homens. Segundo
vós, Zeus é invejoso e manda um sonho enganador quando quer arruinar os homens.
Portanto, olhai para os vossos próprios monumentos e aceitai-nos, ao menos por
inventar fábulas semelhantes às vossas. Nós não somos insensatos, mas a vossa
religião é pura charlatanice. Se dizeis que os deuses têm origem, afirmais
também que eles são mortais. Como é que Hera não concebe mais? Será que ela se
tornou velha, ou não tendes quem vos anuncie? Crede em mim, ó gregos, e deixai
de explicar alegoricamente os vossos mitos e deuses. De fato, se procurais
levar a cabo tal intento, vossos deuses são destruídos não somente por nós, mas
também por vós. Com efeito, ou os demônios entre vós são o que se diz que são
e, neste caso, têm condição perversa; ou interpretados para significar outra coisa,
já não são o que se diz. Eu não me persuadiria jamais a adorar a substância de
elementos materiais, nem procuraria persuadir o meu próximo a isso. Metrodoro
de Lâmpsaco, em seu livro sobre Homero, discute com farta insensatez, reduzindo
tudo a alegoria. Aí ele diz que nem Hera, nem Atena, nem Zeus são o que pensam
aqueles que levantam templos e recintos sagrados para eles, mas forças da
natureza e ordenação dos elementos. Naturalmente direis que são da mesma
natureza Heitor, Aquiles e o próprio Agamenon e, numa palavra, todos os gregos
e bárbaros, juntamente com Helena e Páris, e que somente por causa da economia
e disposição poética o poeta introduziu todas essas personagens, embora nenhuma
delas tenha existido. Advirto que adiantei tudo isso por pura concessão, porque
por si não é reverente comparar a nossa idéia de Deus com aqueles que se
revolvem na lama da matéria.
A imoralidade do teatro
Qual é a qualidade de vossas
representações teatrais? Quem não zombará de vossos espetáculos públicos que,
realizados com pretexto dos demônios perversos, conduzem os homens à desonra?
Eu vi muitas vezes uma personagem e, vendo-a, admirei-me e, depois de me
maravilhar, a desprezei, pois era uma por dentro e mentia por fora o que não
era, extremamente efememinada e totalmente dissoluta; algumas vezes seus olhos
brilhavam, outras vezes gesticulava agilmente com as mãos; ora fazia-se de
louca com a sua máscara de barro, ora se convertia em Afrodite ou Apolo. Ela
sozinha era a acusadora de todos os deuses, compêndio da superstição,
caluniadora dos feitos dos heróis, representante de assassínios, intérprete de
adultérios, depósito de loucuras, mestra de corrompidos, ocasião de condenações
à morte. E tal homem que vi era por todos aclamado. Eu porém voltei as costas
para aquele que em tudo era enganado: em seu ateísmo, em suas representações e
em sua pessoa. Vós, porém, vos deixais arrebatar por tais pessoas e ultrajais
os que não tomam parte em vossos entretenimentos. Não quero ficar de boca
aberta quando um coro canta. Nem me dá vontade de me conformar aos gestos e
movimentos contra a natureza. Que tipo de extravagância não se inventa e
representa entre vós? Rouquejam e recitam indecências, praticam-se movimentos
que não são lícitos, e vossas filhas e filhos contemplam os que dão aulas em
cena sobre como cometer um adultério. São belas as vossas salas de audição que
apregoam tudo de pecaminoso que se pratica no escuro da noite, e divertem os
ouvintes com recitais de discursos desonestos. Bons também são os vossos poetas,
embusteiros que com suas retóricas enganam aqueles que os escutam.
A luta de gladiadores
Vi também homens fatigados
pelos exercícios de treinamento que levavam por todo lugar o peso de suas
carnes. A estes são propostos prêmios e coroas e os agonotetas ou organizadores
de combates os incitam a competir não em alguma ação boa, mas na insolência e
na luta, sendo coroado o que melhor golpeia. Esse é o menor mal; o mais grave
quem não vacilará em explicálo? Existem aqueles que de tal maneira se entregaram
à ociosidade, que por dissolução vendem-se a si mesmos para serem mortos; o
pobre se vende a si mesmo e o rico compra os que devem matá-lo. Aí se assentam
os espectadores, e os lutadores combatem corpo a corpo, sem nenhum objeto, e
não há ninguém que desça para ajudá-los. Por acaso são boas ações como essas
que praticais? O homem proeminente entre vós reúne o exército de assassinos e
anuncia publicamente que vai alimentar uma tropa de bandidos. Depois esses
mesmos bandidos saem de sua casa e vós todos correis para o espetáculo,
primeiro para serem juízes da maldade do agonoteta, e depois dos próprios
gladiadores. E aquele que não pôde assistir à matança fica triste por não ter
sido condenado a ser espectador de obras perversas e abomináveis. Sacrificais
animais para comer a sua carne e comprais homens para infligir também à alma
uma carnificina humana, saciando-a com os mais ímpios derramamentos de sangue.
O salteador mata para roubar; o rico, porém, compra gladiadores somente para
matar.
Novo ataque ao teatro
Para que me serve esse ator
que, na tragédia de Eurípides, representa, furioso, o matricídio de Alcmeon?
Ele não preserva nem a sua própria figura, abre desmesuradamente a boca, brande
a espada à direita e à esquerda, inflama-se em gritos e veste uma roupa que
ninguém usaria. Que pereçam as fábulas de Hegesipo e de Menandro, versifïcador
da mesma língua daquele. Por que ficaria eu boquiaberto diante do flautista
mítico? Que falta me faz trabalhar, como Aristóxeno, pelo tebano Antigenides? Concedemo-vos
todas essas inutilidades, em troca acreditai em nossas doutrinas ou,
imitando-nos, deixai-nos em paz com elas.
Discurso Contra os Gregos - Caps
XXV a XXXVI
Por Taciano, o Sírio
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides
M. Balancin
Fonte: Padres Apostólicos, Volume
I, Coleção Patrística. Ed. Paulus
Outra vez contra os filósofos
O que é que os vossos
filósofos fazem de grande e maravilhoso? Trazem um dos ombros desnudado,
conservam sua longa cabeleira, cultivam sua bela barba, usam unhas de feras;
fanfarroneiam que não têm necessidade de nada, quando, como Proteu, necessitam
do curtidor por causa do alforje, do tecelão para o manto, do lenhador para o
bastão, dos ricos e do cozinheiro para suas gulodices. Tu, homem que imitas o
cão, não conheces a Deus e, por isso, vives imitando os irracionais: depois de
proclamar aos gritos e publicamente com fingida seriedade, te constituis em
vingador de ti mesmo; se não recebes, desatas em insultos, e a filosofia é para
ti a arte do lucro. Tu segues as doutrinas de Platão, e aquele que faz sofismas
conforme Epicuro opõe-se a ti com voz estridente. Queres ordenar tua conduta de
acordo com Aristóteles, e um discípulo de Demócrito te cobre de injúrias.
Pitágoras afirma ter sido Euforbo e é herdeiro da doutrina de Ferecides,
enquanto Aristóteles nega a imortalidade da alma. Vós, entre os quais existem
doutrinas contraditórias, combateis, discordando, contra os que são entre si
concordes. Há quem diz que o Deus perfeito é corpo; eu, que é incorpóreo; que o
mundo é indestrutível; eu, que é destrutível; que a conflagração universal
acontece periodicamente; eu, que de uma só vez; que os juízes são Minos e
Radamante; eu, que é o próprio Deus; que só a alma receberá a imortalidade; eu,
que juntamente com ela também a carne. Gregos, em que vos prejudicamos? Por que
odiais, como sendo os mais abomináveis, a nós que seguimos o Verbo de Deus?
Entre nós não existe antropofagia; as informações que recebeis disso são falsos
testemunhos. É entre vós que Pélope é preparado como ceia para os deuses,
embora seja o querido de Posêidon; Cronos come seus próprios filhos e Zeus
engole Métis.
Contra os gramáticos
Basta de jatar-vos com
discursos alheios e de adornar-vos, como a gralha, com plumas dos outros. Se
cada cidade vos despojasse das expressões que lhe pertence, já teriam acabado
todos os vossos sofismas. Procurando averiguar quem é Deus, desconheceis o que
há em vós mesmos, e, olhando boquiabertos o céu, acabais caindo num poço. As
contradições de vossos livros parecem um labirinto, e aqueles que os lêem se
parecem com o tonel das Danaides. Para que dividis o tempo, dizendo que uma
parte é passado, outra presente e outra futuro? Como 0 futuro pode passar, se é
o presente? Como os navegantes acreditam em sua ignorância, por causa do
movimento acelerado do navio, que são os montes que correm, do mesmo modo sois
vós que passais rapidamente, mas o tempo permanece parado, enquanto aquele que
o fez quiser que exista. Por que, quando expondo minhas doutrinas, sou
recriminado e pondes todo empenho em aniquilar o que me pertence? Será que não
nascestes de modo semelhante a nós e não participais da mesma ordenação do
mundo? Como é que dizeis que só entre vós existe a sabedoria, se não tendes
outro sol, nem outros astros que vos iluminem, nem origem diferente, nem morte
melhor do que os outros mortais? O princípio de vossa charlatanice foram os
gramáticos; vós, que partilhais a sabedoria, vos separastes da verdadeira
sabedoria e repartistes entre os homens os nomes das partes dela; como não conheceis
a Deus, aniquilais uns aos outros, fazendo-vos guerra mútua. Por isso, não sois
nada entre todos; e vos apropriais das palavras, mas em seguida falais como um
cego com um surdo. Para que tendes nas mãos instrumentos de construção, se não
sabeis construir? Para que vos ergueis com as palavras, se estais longe das
obras? Envaidecidos na glória, abatidos nas desgraças, irracionalmente abusais
de vossas figuras retóricas. Em público, andais pomposos, mas escondeis vossas
doutrinas nos cantos. Ao dar-nos cabal conta de que assim sois, vos abandonamos
e já não tocamos em coisa que é vossa, mas seguimos o Verbo de Deus. De fato, ó
homem, que sentido tem desencadear a guerra das letras? Por que, como num
pugilato, fazes chocar tuas pronúncias pelo sussuro dos atenienses, quando
deverias falar de modo mais natural? Por que falas em ático, não sendo
ateniense, dite-me, por que não falas em dórico? Por que este dialeto te parece
mais bárbaro e aquele mais agradável para a conversação?
Não se castiga a ninguém por
causa do nome
Se te aténs à instrução
daqueles mestres de dialeto ático, por que me declaras guerra por escolher
dentre o que se ensina as opiniões que quero? Com efeito, o que é mais absurdo
do que não castigar um bandido pelo mero nome que lhe dão, antes de averiguar
exatamente a verdade e, em troca, odiar-nos por uma preocupação caluniosa, sem
nenhuma averiguação? Diágoras foi ateu e, embora divulgasse os mistérios que se
praticam entre os atenienses, vós o honrastes e, enquanto ledes os seus discursos
frígios., vós nos odiais. Tendo em vosso poder os Comentários de Leonte, vós
vos irritais contra os vossos argumentos; correndo de mão em mão as opiniões de
Apião sobre os deuses do Egito, vós vos proclamais como os homens mais ímpios.
Entre vós mostra-se o sepulcro de Zeus olímpico, por mais que se diga que os
cretenses mentem. A turma inteira de vossos muitos deuses não é nada e, mesmo
quando Epicuro, o negador deles, vá à frente com sua tocha, eu não presto aos
príncipes um culto superior a Deus. Não quero ocultar a minha concepção sobre o
universo. Por que me aconselhas a dissimular a minha conduta? Como, professando
o desprezo da morte, nos anuncias a maneira de evitá-la com esperteza? Eu não
tenho coração de cervo; mas todo esse aparato dos vossos discursos é pura
charlatanice de Persites. Como vou acreditar em alguém que me diz que o sol
éuma massa incandescente e que a lua é terra? Tudo isso são jogos de palavras e
não ordenação da verdade. Existe maior estupidez do que crer nos livros de Herodoro,
em sua história de Herácles, na qual se fala de uma terra superior, de onde
desceu o leão que foi morto por Herácles? De que me serve a dicção ática, os
sorites dos filósofos, as conclusões verossímeis dos silogismos, as medidas da
terra, as posições dos astros e os cursos do sol? Ocupar-se em averiguar essas
coisas é obra daqueles que impõem suas próprias opiniões como lei.
Contra a variedade das leis
Por isso, condeno também as
vossas leis. Deveria haver uma só constituição política comum para todos;
agora, há tantas legislações quantas cidades existem, e assim acontece que o
que entre uns é vergonhoso, entre outros é tido por honroso. Os gregos, por
exemplo, pensam que se deve evitar a união com a própria mãe, ao passo que
entre os magos persas isso é tido como a mais bela instituição. A pederastia é
perseguida entre os bárbaros; entre os romanos, porém, é considerada um
privilégio, pois procuram reunir rebanhos de crianças para ela, como manadas de
cavalos para o pasto.
Caminho para a fé: reflexão
autobiográfica
Tendo visto isso tudo, e
também depois que me iniciei nos mistérios e examinei as religiões de todos os
homens, instituídas por eunucos efeminados, encontrando entre os romanos aquele
que eles chamam de Júpiter Laciar, que se compraz em sacrifícios humanos e no
sangue dos executados; que Diana, não longe da grande cidade, exigia o mesmo
tipo de sacrifícios; por fim, que numa parte um demônio, e em outra, outros se
entregavam em perpetrar iniqüidades semelhantes, entrando em mim mesmo,
comecei a perguntar-me de que modo ser-me-ia possível encontrar a verdade. Em
meio às minhas graves reflexões, caíram-me casualmente nas mãos algumas
Escrituras bárbaras, mais antigas que as doutrinas dos gregos e, se
considerarmos os erros destes, são realmente divinas. Tive que acreditar nelas,
por causa da simplicidade de sua língua, pela maturidade dos que falam, pela
fácil compreensão da criação do universo, pela previsão do futuro, pela
excelência dos preceitos e pela unicidade de comando do universo. Com a alma
ensinada pelo próprio Deus, com preendi que a doutrina helênica me levava para
a condenação; a bárbara, porém, livrava-me da escravidão do mundo e me
afastava de muitos senhores e tiranos infinitos. Ela nos dá, não o que não
tínhamos recebido, mas o que, uma vez recebido, o erro nos impedia de possuir.
O tesouro escondido
Tendo compreendido essas
coisas, quero tornar-me uma criança pequena e desvestir-me do homem terreno. De
fato, sabemos que a natureza da maldade é semelhante a uma semente pequeníssima
que, com a mais leve razão, lança raízes; novamente se desfaz se nós obedecemos
ao Verbo de Deus e não nos dissipamos a nós mesmos. Por meio de um tesouro
oculto, o Verbo de Deus se tornou dono do que é nosso. Desenterrando esse tesouro,
nós nos enchemos de poeira, mas demos ao Verbo a ocasião para ele estar
conosco. Somente aquele que recebe toda a posse dele terá poder sobre a mais
preciosa riqueza. Além disso, essas coisas fiquem ditas para os da própria
casa. Para vós, gregos, que outra coisa vos direi, senão que não insulteis
aqueles que vos são superiores, e que pelo fato de se chamarem bárbaros não os
tomeis como pretexto para vossos escárnios? Se quiserdes, podeis encontrar a
causa pela qual nem todos se entendem em uma só língua. Estou disposto a dar
uma explicação fácil e abundante sobre isso para aqueles de vós que desejam
examinar a fundo a nossa doutrina.
A prova da antigüidade
Creio agora oportuno
demonstrar-vos que a nossa filosofia é mais antiga do que as instituições
gregas. Os limites serão Moisés e Homero. Tanto um como outro são
antiquíssimos: um é o mais velho dos poetas historiadores; outro, autor de toda
a sabedoria bárbara. Tomemo-los para estabelecer a comparação e veremos que a
nossa religião não só é mais antiga que a cultura dos gregos, mas anterior à
invenção do alfabeto. Não tomarei testemunhas da minha própria casa, e sim
valer-me da ajuda dos próprios gregos. A primeira forma não teria sentido, nem
mesmo nós aceitamos isso. A segunda, porém, se verá que é um maravilhoso plano,
pois vos combateremos com vossas próprias armas e usaremos os vossos próprios
argumentos insuspeitos.
Os mais antigos que se dedicaram
a investigar a poesia de Homero, sua origem e o tempo em que floresceu, foram
Teágenes de Régio, que viveu no tempo de Combises, Estesímbroto de Tasos,
Calímaco de Colofon, Heródoto de Halicarnasso e Dionísio de Olinto; depois
desses, Éforo de Cima, Filócoro de Atenas e os peripatéticos Megaclides e
Camaleonte; depois os gramáticos Zenódoto, Aristófanes, Calímaco, Crates,
Eratóstenes, Aristarco e Apolodoro.
Entre estes, os da escola de
Crates dizem que Homero apareceu antes da volta dos heráclidas, o mais tardar
oitenta anos depois da guerra de Tróia; as de Aristarco, durante a emigração
jônia, que aconteceu cento e quarenta anos depois do que aconteceu com Tróia;
Filócoro, depois da emigração jônia, durante o arcontado de Arquipo em Atenas,
cento e oitenta anos depois dos acontecimentos de Tróia; os de Apolodoro, cem
anos depois da emigração jônia, que equivaleria a duzentos e quarenta anos
depois de Tróia. Alguns afirmaram que ele nasceu antes das Olimpíadas, isto é,
quatrocentos anos depois da tomada de Tróia. Alguns abaixam o tempo, e o fazem
contemporâneo de Arquíloco, que floresceu na vigésima terceira olimpíada, na
época do lídio Giges, quinhentos anos depois da guerra de Tróia. Para os que
podem examinar com exatidão os meus argumentos, é suficiente o que foi dito
resumidamente sobre o poeta Homero e sobre a discussão e discrepâncias entre os
que dele falaram. Daí épossível a qualquer um afirmar também a falsidade das
opiniões sobre a sua vida. Com efeito, para aqueles que não possuem uma
cronologia bem ordenada não é possível também com por história verdadeira. De
fato, qual é a causa do erro ao escrever, senão combinar dados não verdadeiros?
Filosofia cristã
Entre nós não existe a
ambição de glória e, por isso, não seguimos uma multiplicidade de doutrinas.
Com efeito, afastados da razão vulgar e terrena, obedientes aos mandamentos de
Deus e seguindo a lei do Pai da incorrupção, rejeitamos tudo o que se funda em
mera opinião humana; não só os ricos filosofam, mas também os pobres tomam
gratuitamente parte no ensinamento. O que vem de Deus ultrapassa a qualquer dom
mundano que se poderia dar em troca. Nós, portanto, admitimos a todos os que
querem ouvir-nos, ainda que sejam velhinhas e rapazes e, por fim, qualquer
idade é honrada entre nós. A única coisa da qual estamos bem afastados é a
dissolução. Nós não mentimos ao falar. Seria bom que pusésseis fim à vossa
teimosia na incredulidade. Nossa doutrina está confirmada pelo pensamento de
Deus e vós podeis rir, como pessoas que logo irão chorar. Que coisa mais
absurda do que admirar vosso Nestor que, por fraqueza e peso da idade, só lentamente
pode cortar as carreiras do terceiro cavalo e, todavia, procura lutar como
qualquer jovem. Em troca, zombais daqueles nossos que lutam com a idade e se
ocupam nas coisas divinas. Quem não rirá de vós, quando falais que existiram
certas amazonas, uma tal Semíramis e outras mulheres guerreiras e, ao mesmo
tempo, insultais nossas virgens? Aquiles era jovem e, contudo, é considerado
muito nobre; Neoptólemo era mais jovem ainda, mal era forte; Filocteto estava
doente e, todavia, a divindade precisava dele contra Tróia. De que tipo era
Tersites? Entretanto, era chefe e se, por sua ignorância, não tivesse sido tão
charlatão, não teria sido denegrido por sua cabeça pontiaguda e com pouco
cabelo. Todos os homens que desejam filosofar correm até nós, que não examinamos
as aparências, nem julgamos, por sua figura, aqueles que se aproximam. Pensamos
que a força da inteligência possa existir em todos, ainda que sejam fisicamente
fracos. Vossas instituições, porém, estão cheias de maldade e de muita
ignorância.
A imoralidade da escultura
Tomando a prova do que entre
vós é tido como precioso, pensei em estabelecer que nossos costumes são castos,
enquanto os vossos são acompanhados de muita sua arte. De minha parte, também
condeno Pitágoras, que fez Europa sentar-se sobre um touro, e a vós, que
honrais aquele que, por sua arte, é acusador de Zeus. Divirto-me também com a
habilidade de Micon, que fez um bezerro e colocou Vitória montada nele, porque
Zeus, ao raptar Europa, a filha de Agenor, ganhou a palma de adúltero e
intemperante. Por que Heródoto de Olinto fabricou a prostituta Glicera e a
tangedora Argiva? Briaxis colocou Pasifae em pé, e, recordando a sua
dissolução, falta pouco para que prefirais que as mulheres de hoje sejam como
ela. Houve tal Melanipa, mulher sábia, e por sua sabedoria Lisístrato lhe
esculpiu uma estátua. E, contudo, não acreditais que também entre nós existam
mulheres sábias.
Certamente é muito digno de
veneração o tirano Faláris, que se fazia servir à mesa crianças de peito e por
obra do ambraciota. Polístrato, é apresentado até hoje como homem maravilhoso.
Os habitantes de Agrigento sentiam temor ao olhar semelhante monstro da
desumanidade, enquanto os que se orgulham de sua própria cultura, vangloriam-se
de contemplá-lo em imagem. Como não considerar coisa grave que se honre entre
nós o fratricídio, pois vós mesmos, olhando as figuras de Polinices e Etéocles,
não jogastes as estátuas num poço, juntamente com seu escultor Pitágoras,
destruindo os monumentos da maldade? Por que me insinuais, através de
Policlímeno, para que eu considere maravilha uma mulherzinha que gerou trinta
filhos? Teria sido melhor abominar aquela que recolheu os frutos de sua grande
incontinência, como a porca dos romanos que pelo mesmo motivo, como dizem, foi
considerada digna de culto misterioso. Ares cometeu adultério com Afrodite, e
Andron vos esculpiu Armonia, que deles nasceu. Sofron, que em suas comédias
produziu tantas besteiras e inutilidades, é ainda mais famoso graças à
escultura que até agora existe. O embusteiro Esopo não só se tornou imortal por
causa de suas fábulas, mas a plástica de Aristodemo o tornou famoso no mundo
todo. Como é que, tendo entre vós tantas poetisas que não valem nada,
prostitutas incontáveis e homens malvados, não vos envergonhais de caluniar a
pureza de nossas mulheres? Que me interessa saber que Evanta deu à luz durante
o passeio, ficar boquiaberto diante da arte de Calístrato e erguer meus olhos
para Neera de Calíades? Era uma hetera. Laís foi prostituta e seu cúmplice a
tornou monumento de sua prostituição. Como não vos envergonhais da fornicação
de Hesféstio, por mais artisticamente que Fílon o tenha representado? Porque
honrais o andrógino Ganimedes, graças a Leocares, como se com ele possuísseis
um tesouro, assim como a mulherzinha dos braceletes que Praxíteles cinzelou? O
que deveríeis fazer é recusar tudo isso e buscar verdadeiramente o bem, e não
abominar nossa conduta, tornando vossas as obscenidades de uma Filênis e de uma
Elefantis.
Taciano viajante
Exponho-vos tudo isso, não
porque soube de outros, mas porque percorri muitas terras, professei como
mestre vossas próprias doutrinas, pude examinar muitas artes e idéias e, por
fim, vivendo em Roma, pude contemplar detidamente a variedade de estátuas que
para lá vós exportastes. De fato, não me preocupo, como o vulgo costuma fazer,
em confirmar minhas doutrinas com opiniões alheias, mas só quero escrever
aquilo que eu pessoalmente compreendi. Justamente por isso, dando adeus à
altivez dos romanos, ao frio palavrório dos atenienses e aos contraditórios
sistemas de vossa filosofia, aderi finalmente à nossa filosofia bárbara. Eu
começara a escrever como ela é mais antiga que vossas instituições, mas diferi,
porque estava premido para expor outro tema; agora, chegado o momento de falar
de suas doutrinas, procurei terminar a minha exposição. Não leveis a mal a
nossa instrução, nem objeteis contra nós a estupidez e a bufonaria de que
"Taciano, saltando sobre os gregos, saltando sobre a incontável Caterva de
filósofos, nos traz a novidade de sistemas bárbaros." Com efeito, o que há
de mal que homens que se demonstraram ignorantes fossem convencidos por outro
que há pouco sofreu a mesma enfermidade? O que há de absurdo que, segundo
vosso próprio sofista, alguém, tornando-se velho, vá ao mesmo tempo aprendendo
muitas coisas?
Moisés é anterior a Homero
Concedamos que Homero tenha
vivido, não após a guerra de Tróia, mas no próprio tempo da guerra e que até
tenha combatido no exército de Agamenon e que, se alguém se compraz com isso,
tenha nascido antes da invenção do alfabeto. Ficará claro que o dito Moisés é,
em muitos anos, mais antigo que a tomada de Tróia, muito anterior à própria
fundação da cidade, a Tros e a Dárdano. Para demonstrar isso, valer-me-ei de
testemunhos caldeus, fenícios, egípcios e... para que mais? De fato, quem só
procura persuadir sobre um ponto particular, tem que explicar a seus ouvintes
de forma mais breve que Beroso, o babilônio, que foi sacerdote do deus Belo dos
babilônios. Beroso viveu nos tempos de Alexandre e escreveu em três livros a
história dos hebreus para Antíoco, terceiro sucessor de Alexandre. Contando as
façanhas dos reis, começam por um chamado Nabucodonosor, que fez a campanha
contra os fenícios e judeus. Sabemos que tais acontecimentos foram anunciados
pelos nossos profetas e que aconteceram muito depois da época de Moisés,
setenta anos antes do domínio dos persas. Pois bem, Beroso é homem muito
autorizado e a prova está no fato de que Juba, em seu Sobre os assírios, afirma
ter tomado de Beroso a história deles. Juba compôs dois livros Sobre os
assírios.
Discurso Contra os Gregos - Caps
XXXVII a Conclusão
Por Taciano, o Sírio
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides
M. Balancin
Fonte: Padres Apostólicos, Volume
I, Coleção Patrística. Ed. Paulus
O testemunho fenício
Depois dos caldeus, eis o
testemunho dos fenícios. Houve três escritores entre eles: Teódoto, Hipsícrates
e Moco, cujos livros foram traduzidos para o grego por Leto, o mesmo que
investigou com exatidão as vidas dos filósofos. Nas histórias desses autores se
esclarece em que época aconteceu o rapto de Europa e a chegada de Menelau à
Fenícia, assim como os feitos de Hiram, que deu sua filha em casamento a
Salomão, rei dos judeus, e lhe forneceu madeiras de toda espécie para a construção
do templo. Menandro de Pérgamo também escreveu sobre essa mesma matéria. A
época de Hiram já se aproxima dos acontecimentos de Tróia; Salomão, porém,
contemporâneo de Hiram, é muito posterior a Moisés.
O que os egípcios dizem
Existem cronologias exatas
dos egípcios, e seu historiador é Ptolomeu, não o rei, mas um sacerdote de
Mendes. Contando as façanhas dos reis, ele diz que no tempo de Amósis, rei do
Egito, aconteceu a saída dos judeus, sob o comando de Moisés, para aterra que
eles desejavam. Diz literalmente: "E Amosis foi contemporâneo do rei
Ínaco." Depois de Ptolomeu, o gramático Apião, autor aprovadíssimo, no
livro quarto de sua História Egípcia (a obra compreende cinco livros), diz
também que Amósis, que viveu no tempo de Ínaco, rei de Argos, destruiu a cidade
de Avario, como Ptolomeu de Mendes registrou em sua Crônica. Pois bem: o
período de Ínaco até a tomada de Tróia preenche vinte gerações, como será
demonstrado em seguida.
Os reis de Argos
Os reis dos agravos foram os
seguintes: Ínaco, Foroneu, Ápis, Argivo, Críaso, Forbante, Triopante, Crótopo,
Estenelau, Dânaos, Linceu, Preto, Abas, Acrísio, Perseu, Estenelau, Euristeu,
Atreu, Tiestes, Agamenon, no décimo oitavo ano do qual Tróia foi tomada. O
leitor inteligente precisa notar com toda a diligência que, segundo a própria
tradição dos gregos, não existia entre eles nenhuma história escrita. Com
efeito, Cadmo, que introduziu entre eles as letras, chegou à Beócia muitas
gerações mais tarde e, só depois de Ínaco, sob Foroneu, terminou a vida
selvagem e nômade, quando os homens se civilizaram um pouco. Concluindo: Se
Moisés aparece como contemporâneo de Ínaco, ele é quatrocentos anos mais antigo
do que a guerra de Tróia. E que assim o seja, fica demonstrado pela série dos
reis áticos (assim como pelos da Macedônia, Ptolomeus e Antioquenos). Se os
fatos históricos mais ilustres dos gregos começaram a ser registrados depois de
Ínaco, e a partir daí são conhecidos, é evidente que foram também depois de
Moisés. De fato, é sob Foroneu que os atenienses recordam Ógiges, em cuja época
houve o primeiro dilúvio; sob Forbante, Acteão, a partir do qual a Ática se
chamou Actea; sob Tiopante, Prometeu, Epimeteu, Atlas e Cécrope, aquele de
dupla natureza, e Io; sob Crótopo, o incêndio de Faetonte e o dilúvio de
Deucalião; sob Estenelau, o reinado de Anfiction, a chegada de Dânaos ao
Peloponeso, a fundação de Dardânia por Dárdano e a vinda de Europa da Fenícia
para Creta; sob Linceu, o rapto de Coré, a ereção do templo de Elêusis, a
semeadura de Triptólemo, a chegada de Cadmo a Tebas e o reinado de Minos; sob
Preto, a guerra de Eumolpo contra os atenienses; sob Acrísio, o passo de Pélope
da Frígia, a chegada de Íon a Atenas, o segundo Cécrope, as façanhas de Perseu
e Dioniso e Museu, discípulo de Orfeu. Por fim, sob o reinado de Agamenon,
Tróia foi tomada.
Assim, de tudo o que foi
dito, fica claro que Moisés é mais antigo do que os antigos heróis, guerras e
divindades. E vale mais acreditar naquele que precede em idade do que nos
gregos, que foram retirar dessa fonte seus ensinamentos, sem entendê-los. De
fato, muitos de seus sofistas, com grande curiosidade vã, procuraram adulterar
aquilo que conheceram de Moisés e que filosofam à maneira de Moisés,
primeiramente para dar aparência de dizer algo original, depois para falsificar
a verdade como um conjunto de fábulas, dando um verniz de falsa retórica àquilo
que não compreenderam.
Quanto à nossa religião e à
história de nossas leis, o que os eruditos gregos disseram sobre ela, quantos e
quais a mencionaram, falarei em minha obra Sobre os que afirmaram a respeito
das coisas de Deus.
Moisés é anterior aos
pré-homéricos: argumento da antigüidade
Apresso-me a esclarecer-vos
sobre o que agora nos preme, isto é, que Moisés não só é anterior a Homero, mas
também aos escritores anteriores a Homero: Lino, Filamon, Tamiris, Anfião,
Orfeu, Museu, Demódoco, Fêmio, a Sibila, Epimênides cretense, aquele que veio
para Esparta; Aristo de Proconeso, autor das Arimaspias do Centauro Asbolo,
Báquis, Drimon, Euplo de Chipre, Horos de Samos e Propânides de Atenas. Com
efeito, Lino foi mestre de Herácles, e este evidentemente vivem uma geração
antes da guerra de Tróia, como se prova pelo fato de que seu filho Trepólemo
esteve no exército que marchou contra ela. Orfeu foi contemporâneo de Herácles,
embora os poemas que lhe são atribuídos dizem ter sido compostos por Onomácrito
de Atenas, que viveu durante a tirania dos Pisistrátidas, na qüinquagésima
Olimpíada. Museu foi discípulo de Orfeu e Anfião foi anterior em duas gerações
à guerra de Tróia; só esse fato me impede de dizer algo mais sobre eles aos
estudiosos. Demódoco e Fêmio viveram na época da guerra de Tróia, pois um se
achava entre os pretendentes e o outro com os feácios. Tamiris e Filámon não
são muito mais antigos do que esses.
Desse modo, quanto à matéria de
cada um dos eruditos, assim como quanto à cronologia e suas fontes escritas,
creio ter tratado muito brevemente, mas com toda exatidão. Contudo, para
completar o que ainda falta, estenderei minha demonstração até os legisladores
considerados sábios. Minos, que é tido como o mais excelente em toda sabedoria,
prudência e legislação, viveu sob Linceu, que reinou após Dárdano, onze
gerações depois de Ínaco. Licurgo, que nasceu depois da tomada de Tróia, entregou
suas leis aos lacedemônios cem anos antes das Olimpíadas. Draco nasceu na
trigésima nona Olimpíada. Sólon na quadragésima sexta, Pitágoras na sexagésima
segunda. E já demonstramos que as Olimpíadas começaram quatrocentos e sete anos
após a guerra de Tróia. Isso demonstrado, só nos resta registrar uma indicação
sobre a idade dos outros sete sábios. Tendo Tales, o mais velho deles, nascido
na qüinquagésima Olimpíada, resumidamente fica dito sobre o que pensar das
épocas dos posteriores a ele.
Conclusão
Essas são as coisas, ó
gregos, que compus para vós, eu, Taciano, que professo a filosofia bárbara,
nascido em terra dos assírios, formado primeiramente em vossa cultura e depois
nas doutrinas que agora anuncio como pregador. Já conhecendo quem é Deus e sua
criação, apresento-me a vós disposto ao exame de meus ensinamentos, advertindo
que jamais renegarei minha conduta segundo Deus.
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