// Estar com Deus: A PARÁBOLA DA PORTA

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A PARÁBOLA DA PORTA

O texto a seguir foi retirado do livro: Por trás das palavras. 5ª. ed. Carlos Mesters. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 13-19.
 A parábola da porta
I. No povoado havia uma casa. Era chamada Casa do Povo. Muito antiga, bem construída. Tinha uma porta bonita e larga, que dava para a rua por onde o povo passava.
Porta estranha. Seu limiar parecia eliminar a separação que havia entre a casa e a rua. Quem por ela entrava parecia continuar na rua. Quem passava na rua parecia ser acolhido e envolvido pela casa. Nunca ninguém se deu conta desse fato, pois era uma coisa tão natural, como é natural haver luz e calor, quando o sol brilha no céu.
A casa fazia parte da vida do povo, graças àquela porta que unia a casa à rua e a rua à casa. Era a praça da alegria, onde a vida se desenrolava, onde tudo se discutia, onde o povo se encontrava. A porta ficava aberta, dia e noite. Seu limiar era gasto pelo uso no tempo. Muita gente, todo mundo por aí passava.
II. Certo dia, chegaram dois estudiosos. Vinham de fora. Não eram de lá. Não conheciam a casa. Só tinham ouvido falar da sua beleza e antiguidade. Vieram para ver. Eram estudiosos que sabiam julgar as coisas antigas. Viram a casa e logo perceberam o seu grande valor. Pediram licença para ficar. Seu desejo era estudar.
Procuraram e encontraram uma porta do lado. Por aí entravam e saíam, para fazer seus estudos. Não queriam ser importunados pelo barulho e borbulho do povo na porta da frente. Queriam ter a tranqüilidade necessária para fazer as suas reflexões.
Ficavam lá dentro, longe da porta do povo, num canto escuro, absortos na investigação do passado da casa.
O povo, entrando na sua casa, via os dois com grandes livros e máquinas complicadas. Chegando perto deles, a gente humilde ficava calada. Silenciava, para não perturbá-los. Tinha por eles uma grande admiração: “eles estudam a beleza e a história da nossa casa! São estudiosos!”
III. Os estudos avançavam. Os dois descobriram coisas lindas que o povo não conhecia, embora as visse na sua casa, todos os dias. Obtiveram licença para raspar algumas paredes e descobriram pinturas antigas que representavam a história da vida do povo, história que o povo não conhecia. Fizeram escavações junto às colunas e conseguiram retraçar a história da construção da casa, história de que ninguém se lembrava.
O povo não conhecia o passado da sua vida e da sua casa, porque o passado estava dentro dele, atrás dos seus olhos que não se enxergam a si mesmos, mas que enxergam todo o resto, orientando a vida para a frente.
À noite, nos serões, misturados com o povo, os dois estudiosos contavam as suas descobertas. Crescia no povo a admiração pela sua casa e pelos dois.
IV. Os dias iam passando. O povo, quando entrava na casa, já ficava calado. Uma casa tão rica e nobre, tão discutida e falada no mundo inteiro, merecia respeito. Era diferente da vida barata da rua ao lado. Tinham de respeitá-la um pouco mais. Aquilo não era lugar de conversa. Assim todos diziam. Assim todos faziam.
E algumas pessoas daquele povoado já nem mais entravam pela porta barulhenta da frente. Preferiam o silêncio da porta lateral dos estudiosos. Evitavam o barulho do povo. Entravam na casa, já não para encontrar-se e falar com os outros, mas para poder conhecer melhor a beleza da sua casa, a Casa do Povo. Recebiam explicações dos estudiosos sobre a casa que tanto conheciam e pareciam não conhecer mais.
V. Assim, pouco a pouco, a Casa do Povo deixou de ser do povo. O povo inteiro preferiu a porta dos estudiosos.
O povo convenceu-se de que era ignorante mesmo. Os estudiosos é que sabiam e conheciam as coisas do povo melhor do que o próprio povo. Assim pensavam todos.
Agora, entrando na sua própria casa, o povo ficava silencioso e acanhado. Como se estivesse numa casa estranha, dos tempos passados, que não conhecia. Observava e estudava, em grupos pequenos, rodando na quase escuridão. Já nem mais se lembrava dos tempos de outrora, quando juntos falavam e brincavam  no lugar onde agora estudavam, olhando sério, imitando os estudiosos, repetindo suas lições.
VI. Pouco a pouco, a porta da frente foi esquecida. Uma tempestade de vento a fechou. Ninguém a notou. Mas não fechou de todo. Uma fresta estreita ficou.
Cresceu o capim na frente. A mata vegetou, cobrindo a entrada, por falta de uso. Até o aspecto da rua mudou. Agora era só rua. Nada mais. Triste e deserta, um beco sem saída, sem os encontros do povo que por aí passava.
A porta do lado acolhia o povo, que entrava e olhava, admirado e extasiado. Tanta riqueza que não conhecia!
Por dentro, a casa ficou mais escura, por falta da luz que vinha da rua. Lâmpadas e velas supriam a falta. Mas a luz artificial modificava as cores.
VII. O tempo foi passando. A alegria da descoberta arrefeceu. Diminuía o fluxo do povo que visitava a casa pela porta do lado, porta dos estudiosos. E a porta do povo que ficava na frente já não existia. Dela ninguém mais se lembrava.
O povo sabido, um punhado de gente, com visitantes ilustres de outros lugares, continuava a frequentar a casa do povo, pela porta dos estudiosos. Lá dentro, fazia as suas reuniões, discutindo as coisas antigas da casa, coisas do passado.
O povo sofrido, a gente humilde, passava na rua, deserta e triste. Não se interessava pelas coisas antigas. Não entendia das brigas dos estudiosos. Vivia a vida, só isso fazia. Mas parecia que algo faltava. Não sabia o quê, pois não mais se lembrava. Faltava uma casa que fosse do povo.
VIII. Os estudiosos, alegres com as descobertas, continuavam os estudos. Fundaram até uma escola, para educar os meninos do povoado na ciência do passado. Seriam os seus sucessores na defesa da Casa do Povo. Assim pensavam.
Mas um dos dois ficou apreensivo com a falta crescente do interesse da gente. A massa do povo já não aparecia. Notou que a vida do povo já não era a mesma. Era menos alegre. Diferente de quando chegou. Cada um, agora, só pensava em si. Não havia mais encontros. Tentaram, é verdade, encontrar-se em outros lugares. Mas não deu certo. Os encontros programados levavam a um desencontro maior. Algo faltava. Ele não sabia o quê. Procurava sabê-lo.
E ele se perguntava: “Por que é que o povo já não comparece em sua própria casa?  Por que é que não vem mais aqui para conhecer as coisas que nós dois descobrimos e defendemos para ele? Por que é que não vem mais aqui para conversar e encontrar-se, para brincar, falar e cantar?” Não tinha resposta para as perguntas que se fazia.
O outro estudioso nada disso notou, absorto, como estava nos seus estudos do passado. Reclamava até do colega: “Você anda muito distraído! Sua pesquisa não vale mais nada. Ela é muito superficial!” Exigia dele maior aplicação no estudo do passado e menor atenção para o povo da rua. Pois, afinal, era ele que mandava na expedição.
IX. Certa noite, aconteceu que um velho mendigo, sem casa, sem ter onde morar, entrou na mata que crescia ao lado da rua, à procura de um abrigo. E lá ele viu, sem saber o que era, uma fresta aberta, e por ela entrou. Na sua frente, se abriu uma casa enorme. Casa tão boa que o deixou logo à vontade. Parecia estar na rua e, no entanto, estava bem abrigado.
Na noite seguinte, voltou para lá. Voltava sempre. Foi dizê-lo aos seus amigos, todos mendigos, pobres como ele. Contava a descoberta como se fosse um segredo. Foram com ele. Entraram todos, um por um, pela fresta estreita da porta da frente, que um dia o vento bateu, sem conseguir fechá-la por inteiro.
De tanto entrar e sair pela porta da frente, o capim foi pisado, o mato abatido. Uma trilha estreita apareceu no chão, um caminho novo se abriu.
Sendo tantos os amigos que queriam entrar, empurraram a porta, e ela cedeu. Ficou um pouco mais larga a entrada, para o povo passar, para o sol entrar. A casa iluminou-se por dentro, ficou mais bonita. Ficaram mais à vontade. Grande foi alegria do povo.
X. A descoberta correu de boca em boca da gente humilde. Nada contavam aos outros. Era o segredo deles. “Aquela casa é nossa”, assim eles diziam. Mas a descoberta não podia ficar escondida. Era uma ingenuidade do povo simples que pouco reflete e não tem malícia.
De manhã, quando o relógio marcava a hora da abertura da porta do lado, para receber os visitantes ilustres, os faxineiros encontravam lá dentro sinais da presença do povo humilde. Ouviam até as suas risadas e conversas. Conversas de gente contente, bem à vontade, que não se incomodava com as coisas antigas, nem pagava para entrar. Risadas de gente que se sentia em casa, na casa que começava a ser, de novo, a Casa do Povo.
O fato foi levado ao conhecimento dos dois estudiosos. Um ficou bravo, o outro calou-se. O primeiro reclamou: “Como é possível tanta ignorância! Vão estragar e profanar a nossa casa! E o nosso esforço? O estudo de tantos anos? Onde ficou? Falou como se fosse o dono da casa. O outro retrucou: “A casa não é sua!”  Os dois brigaram por causa da casa, por causa do povo.
XI. O outro estudioso escondeu-se, de noite, num canto da casa. Viu o povo entrar, sem pedir licença, para brincar, falar e cantar, para sentir-se à vontade e encontrar-se com os outros. Gostou de ver essa alegria na casa e esqueceu-se, por um momento, das riquezas antigas. Gostou tanto, que entrou na roda e brincou. Brincou, falou e cantou, a noite inteira. Coisa que de há muito não mais fazia. Nunca se sentira tão feliz na vida.
Descobriu, naquela hora, que tudo aquilo que tanto estudara, tinha sido feito pelo povo, para o povo poder alegrar-se na vida. Descobriu, então, a resposta para as perguntas que antes fizera. O erro estava na porta do lado. Esta desviou o povo da porta da frente, separou a rua da casa e a casa da rua, fez a casa ficar mais sombria, estranha ao povo, fez a rua tornar-se deserta e triste, um beco sem saída.
Também ele passou a entrar pela porta da frente. E assim fazia, todas as noites. Passava a ser conhecido e acolhido pelo povo que não distingue as pessoas que nele se misturam. Era um do povo.
XII. Entrando pela porta da frente, olhava a riqueza e a beleza da casa de um ângulo novo que ainda não conhecia. Vista à luz que vinha da rua e da alegria do povo, a casa revelava coisas lindas que os livros não ensinavam e as máquinas não descobriam.
Para ele, a casa tornou-se como a montanha majestosa que o sol ilumina, de repente, com seus raios gratuitos, vermelho-amarelos, no raiar de um novo dia. Tudo mudou, embora nada tivesse mudado. Tudo era como antes, e tudo era tão diferente. Uma nova esperança nasceu.
Começou a estudar os seus livros com um novo olhar e descobria coisas que o colega nem suspeitava. Seu gosto pelo estudo até aumentou, mas o colega não acreditou.
Estando no meio do povo e participando da sua alegria, o estudioso falava ao povo das riquezas da casa. Falava das coisas lindas que a casa possuía e que ele descobria à luz que vinha dos livros e do passado, e à luz que vinha da rua e da alegria do povo. Falava segundo a oportunidade que se dava. Sua voz não pesava nem abafava. Não fazia calar a gente humilde pelo peso da ciência e da sabedoria. Ensinava o povo, no meio da alegria, e aumentava nele o prazer de viver.
E ele dizia consigo: “Diante da vida do povo sofrido, a gente não fala, só sabe calar; esquece as ideias do povo sabido e fica humilde, começa a pensar…”

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