Ao começar o próprio estudo da hermenêutica, devemos nos perguntar se é realmente necessário interpretar a Bíblia. Algumas pessoas afirmam que não. Alguns acham que a Bíblia já foi escrita numa linguagem pura e simples de entender. Afinal, a Bíblia não é a Palavra de Deus para o povo de Deus? Deus nos mandaria uma mensagem difícil de entender?
Estas mesmas pessoas às vezes dizem “A Bíblia diz o que significa e significa o que diz.” Ou seja, não há necessidade de interpretar a Bíblia porque ela é clara. Segundo este raciocínio a mensagem da Bíblia não precisa ser explicada. Existe até medo de que no próprio processo de interpretar a Bíblia pensamentos humanos poderiam contaminar a mensagem original.
Vale a pena notar que as pessoas que afirmam que a Bíblia não precisa ser interpretada às vezes estão afirmando isso por causa de preocupações sinceras. Vamos examinar três destas preocupações.
- Alguns tem a preocupação de que alguém poderia tentar se tornar intermediador oficial da Palavra de Deus.
Uma preocupação que algumas pessoas tem é por causa do medo de que alguém possa tentar se posicionar entre o Cristão e Deus como intermediador na forma de um intérprete oficial. Efetivamente, isto já aconteceu entre certas denominações nos primeiros séculos depois de Cristo. Até hoje, há grupos em que uma interpretação “oficial” é dada por alguns líderes e é esperado que todos os membros aceitem esta interpretação “oficial”.
Segundo esta preocupação, dizer que a Bíblia precisa ser interpretada é praticamente igual a dizer que o homem comum não tem acesso por meio da Bíblia a Deus Pai. Mas este raciocínio teria razão apenas se disséssemos que nenhuma parte da Bíblia poderia ser compreendida sem a ajuda da interpretação. São poucos os interpretes hoje em dia que ousaria tal afirmação.
A verdade é que o que é de mais importante na Bíblia, o evangelho puro e simples, é tão simples que pode ser compreendida por qualquer pessoa com as condições básicas de lógica e raciocínio. O evangelho foi divulgado no começo apenas verbalmente e até hoje continua sendo a mesma história simples e poderosa. Mas, isto não muda o fato de que há partes da Bíblia que são difíceis mesmo de compreender. Nestes casos, sim, precisamos de pessoas treinadas e preparadas para interpretar aquela mensagem.
O próprio apóstolo Pedro afirma isto em relação às cartas do apóstolo Paulo quando ele diz, falando de Paulo: “… como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas cousas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam…” (2 Pedro 3:15b – 16 ARA).
Aqui vemos Pedro afirmando três verdades importantes:
- Nem tudo nas cartas de Paulo era complicado, mas –
- Há certas coisas “difíceis de entender” nas cartas dele.
- Sempre existe a possibilidade de alguém “deturpar” a Palavra de Deus (ou seja, corromper ou perverter). Se a Palavra de Deus fosse inteiramente simples e clara para compreender, jamais seria possível alguém deturpá-la.
Se o próprio apóstolo Pedro, com todo seu conhecimento e experiência, poderia dizer que havia coisas nas cartas de Paulo que até ele admitia serem difíceis de entender, então é para ser esperado que um Cristão leigo e sem treinamento hoje teria também dificuldade em entender estas e outras coisas. Devemos lembrar aqui, que Pedro, diferente de nós hoje, não tinha que lidar com as mesmas diferenças de cultura ou língua quando ele lia as cartas de Paulo.
Estas barreiras que dificultam a compreensão de qualquer obra escrita são enfrentadas por todo Cristão que lê a Bíblia hoje em dia. Se o apóstolo Pedro tinha dificuldade em entender Paulo quando falava numa língua conhecida por ele, na sua própria cultura nativa, quanto mais difícil será para um Cristão dois mil anos depois numa outra língua e cultura muito distante daquela?
Também, devemos lembrar que sempre que um evangelista, missionário ou pastor prega uma mensagem para a igreja, ele já passou por um processo de interpretar a mensagem de Deus para daí formular o conteúdo da sua pregação. A única maneira de evitar qualquer interpretação seria se o pregador apenas lesse alguma passagem sem comentários. Na verdade, nem isso seria totalmente sem interpretação, porque o próprio ato da ênfase verbal é passível, por mais sutil que seja, de uma forma de interpretação.
Lendo a seguinte frase do Salmo 23 com a ênfase nas palavras em itálica podemos notar uma diferença de interpretação devido esta ênfase.
– O Senhor é o meu pastor e nada me faltará.
– O Senhor é o meu pastor e nada me faltará.
– O Senhor é o meu pastor e nada me faltará
Também, lembramos que, mesmo lendo o texto com o mínimo de ênfase nosso pregador ainda não escaparia do processo de interpretação desde que ele esteja lendo uma versão da Bíblia que fora uma tradução. Vamos examinar isto em mais detalhes um pouco mais adiante, mas é válido notar aqui, que toda e qualquer tradução passou por um processo de interpretação por parte dos tradutores e portanto aquele que lê a Bíblia fora o hebraico e grego original, quer queira, quer não, está sujeito àquele processo de interpretação.
Exemplos de traduções infelizes:
1 Cor 6:10:
NVI
“nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus.”
ARA
“nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus.”
Heb 13:17
NVI
Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles….
ARA
Obedecei aos vossos guias e sede submissos para com eles;…
(A palavra traduzida “autoridade” na NVI não consta no original.)
Podemos ver como as traduções necessariamente interpretam a Palavra e podem levar os leitores a uma conclusão equivocada. Não podemos deixar de usar traduções. Mas, não devemos confiar em nenhuma tradução como completamente perfeita. É por isso que há necessidade de quem interpreta a Palavra. É por isso que é necessário reconhecer que, mesmo usando apenas a Bíblia, estamos sendo influenciado por decisões de interpretação, pois toda tradução é o fruto do processo de interpretação. Então, não há como escapar da necessidade de interpretação.
Sendo assim, é melhor o Cristão se preparar para lidar com a necessidade de interpretação. Podemos concluir também que, apesar de haver a necessidade de interpretação, não precisamos e nem devemos admitir que alguém se torne o intérprete oficial. A melhor proteção contra isso é o Cristão se preparando para examinar e confirmar as traduções e interpretações que ele certamente vai ouvir. Sendo assim, como os Bereanos que vamos avaliar tudo que ouvimos e verificar se o ensino e a doutrina que estamos recebendo é de fato a plena verdade de Deus.
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