Na comunidade de Corinto, era costume reunir-se regularmente para a Ceia do Senhor: "De maneira que, cada vez que vocês comem deste pão e bebem deste cálice, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha" (1Cor 11,26). É impossível dizer com que frequência a comunidade se reunia com este propósito .
Os problemas surgidos nos sugerem que devia ser com bastante frequência. Certamente não se pode excluir que se tratava de reuniões semanais. deste modo, a comunidade de Corinto haveria se acomodado aos costumes familiares dos habitantes da cidade. Muitos que se faziam discípulos de Jesus Cristo haviam sido anteriormente membro das associações religiosas, nas quais também consideravam importantes as reuniões par celebrar o alimento comunitário. Não há dúvida de que é necessário distinguir entre a "prática eucarística" de Corinto e a alimentação ordinária que, segundo Atos dos Apóstolos, eram características do ambiente da comunidade cristã primitiva de Jerusalém: "Diariamente frequentavam o templo em grupo; partiam o pão nas casas e comiam juntos, louvando a Deus com alegria e de todo o coração" (At 2,46).
A princípio, Paulo não estabelecia comparações nem formulava juízos. O que o preocupava, acima de tudo, era que os coríntios tomassem consciência do que estava fazendo quando ocupavam seus lugares na mesa do Senhor: "Por conseguinte, o que come o pão ou bebe do cálice do Senhor sem dar o devido valor terá que responder pelo corpo e pelo sangue do Senhor. Examine-se cada um a si mesmo antes de comer do pão e beber do cálice, porque o que come e bebe sem apreciar o corpo, come e bebe sua própria condenação" (1Cor 11,27-19). No decorrer da historia da Igreja, estas palavras se desconectaram de seu contexto específico, na comunidade de Corinto, e chegaram a adquirir um significado independente. Durante séculos, especialmente no âmbito do protestantismo reformado, elas funcionaram como uma séria advertência, e em alguns círculos ainda são entendidas dessa maneira. Eram muitos os que não se atreviam a aproximar-se da Ceia do Senhor e, desse modo, terminavam por evitar a mesma. Preferiam estar seguros em vez de sofrer a insegurança de não saber se estavam bebendo sua própria condenação. As palavras de Paulo foram adquirindo, pouco a pouco, um tom sombrio, ameaçador e macabro, e ficaram "gravadas" na memória de muitas gerações: "Porque o que como e bebe sem apreciar o corpo, come e bebe sua própria condenação" (1Cor 11,29).
Será que Paulo quis dizer algo parecido com isto? A questão merece uma resposta muito imediata. O rumo que tomou o protestantismo reformado teria assombrado Paulo. Porém, isto não significa que, para ele, "comer a Ceia do Senhor" não trouxesse algum risco. Certamente, as frases citadas tinham, em sua intenção, o valor de uma advertência, mas também é verdade que, em seu sentido, o ponto de referencia essencial não era a vida de fé interior e pessoal, mas sim a prática cotidiana dos fiéis da comunidade e o fato de que alguns viviam prosperamente, enquanto outros passavam necessidades. Nesta passagem, a imagem do "corpo" tem um significado ambíguo. Novamente, reconhecemos que Paulo era um pensador original. O corpo de Cristo, o pão e o vinho, está sobre a mesa do Senhor, porém a comunidade cristã está reunida ao redor dessa mesma mesa, como corpo do Senhor. A demanda de Paulo de "dar seu valor ao corpo" não se refere unicamente ao que há sobre a mesa, mas faz referência a algo mais, ao corpo reunido ao redor da mesa. Esta "ambiguidade" era essencial ao pensamento de Paulo. Isso é deduzido uma vez mais de uma sentença que nos parece claríssima: "É por isso que muitos de voces estão doentes e fracos, e alguns já morreram" (1Cor 11,30). Não sabemos como esse verso acusatório foi recebido na comunidade de Corinto. Podemos supor que essa observação de Paulo não pareceu agradável e que até mesmo possa ter sido uma das causas das dificuldades que não demorariam a surgir.
Para completar essa discussão sobre os problemas surgidos por causa da celebração da Ceia do Senhor, Paulo formulou o seguinte aviso: " Portanto, meus irmãos, quando voces se reunirem para comer, esperem uns pelos outros. E, se alguem estiver com fome, que coma em casa para que Deus não castigue voces por causa dessas reuniões. Os outros assuntos, eu resolverei quando chegar ai" (1Cor 11,33-34). Depois de tanta tensão, o tom se torna surpreendentemente sereno. Definitivamente, Paulo procurava não intensificar o conflito que parecia pior do que temia. No entanto, dessa correspondencia com a comunidade, deduz-se que seus esforços em prol da reconciliação terminaram por provocar novoa agravos, por causa das diferenças de opinião. Até a própria celebração da Ceia do Senhor via-se obscurecida pelas grandes diferenças sociais entre ricos e pobres, que não desapareciam de cena quando a comunidade de reunia (1Cor 11,17-22).
Paulo se incomodava com tudo aquilo, pois estava em flagrante contradição com sua idéia do que deveria ser comunidade cristã. Não era um "clube" livre nem uma associação de pessoas que pensavam da mesma forma, nem um grupo de indivíduos que não se interessavam pelo bem estar dos demais membros. Tudo parece indicar que as concepções de Paulo iam se desenvolvendo conforme ele escrevia. A celebração da Ceia do Senhor, em particular, faz com que a comunidade se reforçe como uma unidade indissolúvel: "Como há um só pão, ainda sendo muitos, formamos um só corpo , pois todos e cada um participam desse único pão" (1Cor 10,17). Segundo Paulo, pode-se dizer que este "único corpo" é o corpo de Cristo (1Cor 12,27)*.
*Há uma real divergência de opinião sobre o contexto dessa imagem na história da religião: ela seria veterotestamentária, helenística ou gnóstica? Cf., por exemplo, J.J. Meuzelaar, Der Leib des Messias. EIne exegetische Studie über den Gedanken Vom Leib Cristi in den Paulusbriefen [O Corpo de Messias. Um estudo exegético dos pensamentos nas cartas de Paulo] (Assen, 1961).
Unidade e divisão: estes são os termos que regem as concepções de Paulo em relação à comunidade: "Os Dons são variados, porém o espírito é o mesmo; as funções são variadas, ainda que o Senhor seja o mesmo; as atividades são variadas, porém é o mesmo Deus que opera tudo em todos" (1Cor 12,4-6). Paulo não era contrário às diferenças, contanto que elas não constituíssem uma ameaça à unidade da comunidade. A unidade precede a diferença, não o contrário. O apóstolo ilustrou a sua ideia de unidade que há de reger na comunidade com a ajuda da imagem do corpo, o qual tem muitas partes. E todas as partes, mesmo sendo muitas, formam um só corpo. Assim, também, todos nós, judeus e pagãos, escravos e livres, fomos batizados pelo mesmo Espírito para formar um só corpo. E a todos nós foi dado beber do mesmo Espírito. Pois o corpo não é feito de uma só parte, mas de muitas" (1Cor 12,12-14). O corpo é formado por muitos membros, mas é um único corpo. Nenhuma de suas partes pode pretender ser mais importante que as demais separadamente: "Se o corpo todo fosse olho, como poderíamos ouvir? E, se o corpo todo fosse ouvido, como poderíamos cheirar?" (1Cor 12,17-18). Evidentemente, Paulo atribuía grande importância a metáfora do corpo. Parecia-lhe difícil escapar dessa metáfora e nunca se cansava de repetir suas concepções: "De fato, existem muitas partes, mas um só corpo. Portanto, o olho não pode dizer à mão: 'Eu não preciso de voce'. E a cabeça não pode dizer aos pés: 'Não preciso de voces'. O fato é que as partes do corpo que parecem ser mais fracas são as mais necessárias, e aquelas que achamos menos honrosas são as que tratamos com mais honra. E as partes que parecem ser feias recebem um cuidado especial, que as outras mais bonitas não precisam. Foi assim que Deus fez o corpo, dando mais honra às partes menos honrosas" (1Cor 12,20-24).
Nas ultimas frases, Paulo desenvolve a imagem ao extremo, de tal modo que começa a parecer embaraçoso. Paulo não era nada humilde. Os "sábios" e distintos membros da comunidade de Corinto escutariam aquelas palavras com crescente irritação e é de se supor que entenderiam a insinuação. Na opinião do apóstolo, não combina com o espírito de Cristo crucificado - "segui meu exemplo, como eu sigo o de Cristo" - olhar uns aos outros com desdem e desprezar os demais por estes possuírem menos dinheiro ou influencia, ou porque possuem menos "sabedoria". O fundamento da unidade na comunidade de Cristo é o Amor. Pela maneira como estruturou 1 Coríntios 12-14, deduz-se claramente que Paulo via as coisas dessa forma. Ele interrompe abruptamente sua argumentação sobre a unidade para introduzir um surpreendente hino de louvor ao amor (1Cor 13). Segundo todos os indícios, esse hino paulino de louvor não é criação do próprio Paulo.*
*Cf. Conzelmann, Firts Corinthians (hermeneia; Philadelphia, 1975) ad locum.
O apóstolo utilizou livremente um teto que ja existia anteriormente. Fazia isto com frequência (por exemplo, 1Cor 15,3-4; Fl 2,6-11).
O hino de louvor tem um caráter "tradicional", pré-paulino. Isso explica o notável fato de que não se estabeleça conexão alguma entre o amor e Cristo, e isso é um indício de que Paulo não se inspirou em uma fonte especificamente cristã. Em virtude de seu amplo contexto cultural e religioso, Paulo estava familiarizado cm os textos nos quais se exaltava a preeminência de "virtudes" como a sabedoria e a verdade. Esses textos não apareciam unicamente nos escritos helenísticos, mas também na antiga literatura sapiencial judaica. Para ilustrá-lo, é suficiente este texto extraído do livro deuterocanônico da Sabedoria de Salomão. Ele foi composto pouco antes do começa de nossa era, em ambiente da Diáspora do judaísmo alexandrino, no Egito, que tinha um contexto helenístico;*
*B.L. Mack, Logos und Sophia. Untersuchugen zur Weisheitstheologie im hellenistische Jüdentum [Logos e Sophia. Estudos sobre a teologia em sabedoria helenística e Judaica] (Gotinga, 1973)
"Porque é emanação do poder divino, emanação puríssima da glória do Onipotente; por isso nada imundo o contamina. É reflexo da luz eterna, espelho nítido da atividade de Deus e imagem de sua bondade. Sendo uma só, tudo pode; sem mudar em nada, renova o universo e, entrando nas boas almas de cada geração, vai fazendo amigos de Deus e profetas; pois Deus ama só quem convive com a sabedoria. É mais bela que o sol e que todas as constelações; comparada à luz do dia, é mais bela, pois este lhe revela a noite, enquanto a sabedoria nem o mal pode com ela. Alcança com vigor extremo a extremo e governa o universo com acerto" (Sb 7,25-8,1).
Paulo tinha um contexto religioso e cultural bem heterogêneo. Isso se deduz uma vez mais o "hino de louvor" ao amor que lhe serviu de base para sua defesa da unidade na comunidade. É tipico da perspicácia criadora do apóstolo recorrer, nesse momento da carta, a um texto que poderia soar familiar a seus leitores de Corinto, tão amantes da sabedoria. Desta vez, no entendo, o tema central não é a sabedoria oua verdade, mas o amor: "Por isso se esforcem para ter os melhores dons. Porém eu vou mostrar a voces o caminho que pe o melhor de todos" (1Cor 12,31). Hpa muitas coisas importantes na vida humana, porém uma se destaca sobre todas as outroas: "Portanto, agora existem três coisas, a fé, a esperança e o amor. Porém a mais valiosa é o Amor" (1Cor 13,13).
O hino de louvor ao amor não deixa de ter seu efeito. Ele lança uma nova luz sobre o que antecede e situa o que segue no ambito "do amor" Paulo sabia bem o que estava fazendo . As divisões prejudicam a comunidade e Paulo lutou muito para combater este problema.